2008-03-11

Textos de apoio à aula de E.A. II

[Autores que terão influenciado o pensamento de Paulo Freire]

Rousseau

Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 1712. O pai, relojoeiro de profissão, encarregou-se pessoal e directamente da sua primeira instrução. Logo que o pequeno Jean Jacques ficou apto a ler, meteu-lhe nas mãos toda a espécie de livros que o pequeno lia enquanto o pai trabalhava; muitas vezes ficavam ambos tão presos por aquelas leituras que as prolongavam por turnos até quase o romper da aurora. Em 1740, com 28 anos, Rousseau foi para Paris onde conheceu diversos filósofos. Neste período ocupou-se sobretudo de música e escreveu comédias e melodramas. Os contactos com Diderot e outros filósofos despertam-lhe novos interesses. Em 1861 são publicadas as suas obras primas: O Contrato Social e Emílio. O Emílio é um romance pedagógico constituído por cinco livros que seguem o desenvolvimento do aluno desde o nascimento ao matrimónio e à maternidade. Rousseau no seu romance questiona-se sobre a complexidade de educar o indivíduo a pensar em termos democráticos, i. e., em termos de vontade geral, numa sociedade que não seja já fundada sobre a vontade geral, que não seja democrática. Rousseau defende uma educação fora da sociedade para sociedade, o que parece completamente absurdo. No seu livro, Emílio deve ser educado ficando o maior tempo possível imune a contactos sociais. É necessário criar continuamente à volta de Emílio situações estimulantes, a fim de que, reagindo a elas, se eduque por si. Rousseau distingue três espécies de educação: da natureza, das coisas e a dos homens. Somente o seu harmónico concurso é capaz de fazer com que um indivíduo seja «bem educado». Não obstante isso, a educação dos homens acaba por ser excluída, porque incontrolável e até, na sociedade tal como é, oposta á da natureza. Para formar Emílio que se deve fazer? Muito: impedir que se faça alguma coisa. A maior e mais importante regra para Rousseau «não é ganhar tempo., é perdê-lo». Trata-se de não deixar a criança criar mofo no ócio, mas também de não embaraçar, perturbar, apressar, um processo natural de maturação e de actividades espontâneas, uma educação natural. A natureza humana não se desenvolve senão através da experiência; o primeiro dever do educador é torná-las possível, desde quase os primeiros movimentos da criança. Rousseau não se cansa de repetir que estas experiências deveriam ser unicamente experiências feitas sobre as coisas, não experiências de relações humanas. Os educadores podem intervir apenas indirectamente, predispondo oportunamente as coisas de modo a preparar aquelas situações que melhor correspondam ás necessidades da criança. Em Rousseau está afastada a ideia de fixar disposições rígidas e mecânicas, a criança deve contrair um único hábito: o de não ter nenhum. A criança é movida, primeiro directamente, depois indirectamente, pelo desejo inato do bem-estar, depois a aprendizagem é fundada sobre a curiosidade, ignorante de todas as coisas que não tenham ligação com tudo o que pode julgar útil.
No Contrato Social, Rousseau enuncia que se deve encontrar uma forma que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada um dos associados por meio da qual cada um, unindo-se a todos os outros, não obedeça senão a si próprio, e fique tão livre como o era dantes. Para Rousseau trata-se não tanto de conservar intacta a liberdade natural quanto de a transformar em liberdade civil, com um real enriquecimento e uma ulterior expansão da personalidade. Este enriquecimento é a moralidade, e ao mesmo tempo aquela a que habitualmente se chama a vida espiritual do homem, já que somente no estado social as suas faculdades se exercitam e se desenvolvem, as suas ideias se alargam, os seus sentimentos se enobrecem. O estado social capaz de oferecer tais vantagens não deve, por conseguinte, ser identificado com uma convivência qualquer, mas somente com uma convivência fundada no pacto social e que realize a vontade geral, pois somente assim é possível que cada um seja livre, embora no respeito da lei. Não se trata de um contrato efectivamente estipulado num determinado momento histórico, e muito menos de um pacto entre soberano e súbditos. Trata-se de uma relação ideal cuja maior ou menor subsistência nos sistemas políticos reais constitui critério de legitimidade destes, i.e., do seu carácter democrático, e trata-se de uma relação que acontece entre cada associado e o complexo de associados, uma vez que para Rousseau o único soberano é o próprio povo. Rousseau tem uma fé quase mística em que o povo chamado directamente a decidir e suficientemente informado da matéria sobre a qual vai deliberar decide sempre bem por uma espécie de “iluminação”.

Kant

O pensamento de Kant, em termos muito gerais, pode ser resumido no mote «Sapere aude», que significa, ter a coragem de confiar à luz do próprio conhecimento racional, até onde esse conhecimento possa levar a pessoa, a possa guiar, sem presunções, mas também sem falsa timidez, o seu pensamento. Kant nasceu no norte da Alemanha em Abril de 1724. Kant representou a consciência mais amadurecida do Ocidente no momento em que a Revolução Francesa e as guerras napoleónicas davam o golpe decisivo nas sobrevivências feudais e nas formas mais despóticas. Segundo Kant o homem deve seguir unicamente a lei moral, a voz do dever, que lhe aparece necessariamente como uma constrição. Todavia, esta constrição é livremente escolhida, é autónoma, de outra maneira seria falha de valor. A pessoa pode segui-la ou não. A principal intuição pedagógica de Kant é que só se pode educar se pensarmos e agirmos em termos universais, isto é, só estamos em paz connosco mesmos enquanto estivermos persuadidos de que o nosso modo de agir é aquele que poderíamos desejar que todos seguissem, porque desse modo a convivência humana resultará mais harmónica, mais rica, mais respeitosa da livre actividade de cada um. Kant, inspirado em Rousseau, de quem foi leitor entusiasta, referia que o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação: ele é o que esta o faz ser. Para Kant as duas artes mais difíceis são exactamente a arte de governar os homens e arte de os educar, pelo que seria conveniente subtraí-las ao empirismo vulgar e fundá-las sobre uma ciência efectiva, a qual não existe ainda. Kant não considera verdadeira educação a adaptação da criança às condições de facto, que é tudo com que normalmente se contentam os pais, e muito menos o adestramento a serem bons súbditos. Uma educação digna desse nome é para Kant, uma educação no sentido de um futuro melhor da humanidade, segundo um plano que não pode deixar de ter um «carácter mundial». Kant é favorável à educação pública, porque é verdadeiramente formadora do cidadão, mas para esse fim é necessário que nas escolas se concilie a submissão à autoridade legítima com o uso da liberdade. Sempre dentro do tema da educação moral, Kant retoma a ideia de Rousseau de que não se devem infligir outros castigos além daqueles que derivam do mal feito como consequências naturais, porque, se queremos fundar a moralidade, não há necessidade de punir, mas, de habituar, logo que seja possível, a criança à ideia do dever, à perfeita sinceridade, a estimar-se a si própria em conformidade com as ideias da sua razão. É sobretudo o temor da própria consciência, não o dos homens ou dos castigos divinos, que deve fazer-se em nós o móbil principal. Kant divide a educação em física e prática. A física refere-se aos cuidados coma vida corpórea e a prática diz respeito à educação moral, à educação na liberdade. Kant critica todos os pedagogos que querem reduzir toda a forma de educação a jogo, porque a criança deve jogar, ter as suas horas de recreação, mas também deve aprender a trabalhar, «O homem tem necessidade de ocupações e até Adão e Eva se tivessem permanecido no Paraíso terrestre, não teriam podido ficar sem fazer nada que os ocupasse sem serem atormentados pelo ócio».


Pestalozzi

Johann Pestalozzi, nasceu em 1746, em Zurique. Entusiasmado com Rosseau e, abraçando-lhe as ideias democráticas, abriu em 1775, um Instituto para crianças pobres com o fim de as preparar para a vida produtiva, mediante, sobretudo, a execução de trabalho (fiacção e tecelagem). Esta experiência durou 5 anos, encontrando dificuldades de toda a ordem: os educandos (cerca de 50) eram muitas vezes deficientes ou vagabundos corrompidos pelo vício e contra o pouco entusiasmo das autoridades comunais que acompanhavam a iniciativa com desconfiança. Para além de outras dificuldades, o maior erro pedagógico de Pestalozzi, na experiência atrás referida, terá sido o de querer introduzir demasiado cedo as crianças no trabalho produtivo. Segundo Pestalozzi, nenhuma aprendizagem vale alguma coisa se ela desanima ou tira a alegria. Os momentos de esforço que se condimentam com alegria e vivacidade não deprimem a alma. Fazer brotar calma e felicidade da obediência e da ordem, eis a verdadeira educação para a vida social. O problema é reunir tudo o que Rousseau separou, isto é, a liberdade da natureza com a autoridade do dever, pois, nem nas circunstâncias mais favoráveis é licito abandonar a criança ao seu capricho. A convivência humana, para não ser constritiva e corruptora, deve basear-se na livre aceitação dos vínculos sociais realizada, não por simples cálculo, mas com base no imperativo do dever, ou seja na autonomia da vida mortal. A educação é exactamente a preparação para uma tal autonomia. Para este pedagogo não é possível uma educação intelectual e artesanal se, primeiro, não tiverem sido educados os sentimentos e as disposições práticas em geral. A educação ético-religiosa tem, portanto, uma espécie de precedência ideal, e também temporal: é dever dos progenitores cuidar dela desde os primeiríssimos movimentos da criança. A criança mais do que pensar e agir, ama e crê, o que não deve entender-se no sentido de que exista uma vida sentimental realmente privada de pensamento e de acção, mas no sentido de que o pensamento e a acção não se organizam senão sobre a reserva de uma conseguida segurança emotiva, de uma certa solidez de relações sentimentais. Embora acentuando a importância dos factores sentimentais na educação, Pestalozzi considerou sempre como valor fundamental a clareza do conhecimento fundada sobre a experiência, i.e., sobre a efectiva intuição das coisas. Contra os sistemas de instrução puramente verbalistas comuns no seu tempo, reivindicava os direitos de uma directa apreensão sensível dos objectos. Pestalozzi aproxima-se de Kant, no plano pedagógico, ao revalorizar a experiência como a única que pode transformar-se em sólido saber, já que a vida educa. No método de Pestalozzi, tudo se funda sobre a acção, seja porque a criança encontra por si só os vários elementos do saber e os seus sucessivos desenvolvimentos, seja porque ela é obrigada, através de sinais representativos, a tornar visível e sensível tudo quanto concebeu. Usa-se da acção, em todo o sentido e de toda a maneira. A criança indaga, observa, recolhe material para as suas colecções, experimenta mais do que estuda, actua mais para poder aprender melhor.


John Dewey

John Dewey, nasceu em 1859, em Vermont. Professor em várias universidades americanas tem como obras mais importantes O Meu Credo Pedagógico (1879), Escola e Sociedade (1899) e Democracia e Educação (1916. Para Dewey a doutrina do interesse é a base da sua pedagogia. Não se pode suscitar artificialmente um interesse por qualquer coisa que por si só não o desperte, é indispensável que o ensino se centre em interesses reais. A escola deve representar a vida actual, uma vida tão real e vital para a criança como aquela que leva em casa, na vizinhança, ou no campo de jogos. Entendida como vida social simplificada, a vida na escola deve desenvolver-se gradualmente com a vida doméstica. Também a disciplina escolar deve derivar da vida da escola compreendida como um todo, e não directamente do professor. A vida activa e social da criança constitui o centro em volta do qual se organizam progressivamente as «matérias», primeiramente aquelas que a familiarizam com o seu ambiente, no tempo e no espaço (história, geografia, noções científicas), depois aquelas que fornecem instrumentos para o aprofundamento das primeiras. Mas as actividades manuais, expressivas ou construtivas, continuarão sempre a constituir o centro de todo o restante estudo, elas irão desde o cozinhar, costurar ao modelar, fiar, tecer, trabalho de carpintaria, marcenaria, etc...Dewey referia que era impossível predizer o que seria a civilização no futuro, por isso era impossível preparar a criança dentro de uma ordem exacta de condições. Prepará-lo para a vida futura significava dar-lhe o governo de si própria, significava educá-la de modo que chegasse a conseguir o desenvolvimento de todas as suas capacidades. Tal tarefa seria impossível se não se tivesse em conta, seguidamente, os poderes, os gostos e os interesses próprios de cada criança, i.e., se a educação não fosse constantemente convertida em termos psicológicos. Assim, o processo educativo teria dois aspectos, um psicológico, que consistia no desenvolvimento das potencialidades do indivíduo e, o outro social, que consistia no preparar e adaptar o indivíduo às obrigações que deverá cumprir, quando adulto na sociedade. Estes dois aspectos estariam, muitas vezes, em grave contradição entre si, mas a contradição atenua-se e pode desaparecer se se reflectir sobre as potencialidades do indivíduo em desenvolvimento, que não terão significado fora de um ambiente social, e em que a única possível adaptação que se pode dar à criança, nas condições existentes é a que resulta de a colocar na posse completa de todas as suas faculdades. As condições existentes, a que se referia Dewey, eram as de um rápido progresso tecnológico e político-social. A Escola devia ser, por isso, um ambiente de vida e de trabalho. O verdadeiro método de aprendizagem identificava-se com o método geral de indagação:
1- É indispensável que a criança possa fazer durante muito tempo e livremente experiências, de modo que possam emergir situações problemáticas por ela apercebidas como tais;
2- O segundo momento é o desenvolvimento de uma ideia, mediante o raciocínio, aquilo a que chama de intelectualização do problema;
3- O terceiro momento consiste na observação e na experiência. Trata-se de provar as várias hipóteses formuladas;
4- O quarto momento é o da reelaboração intelectual das hipóteses primitivas;
5- Finalmente a verificação das ideias formuladas que pode consistir na aplicação prática ou em novas observações ou experimentações.


Marx

Karl Marx nasceu em Maio de 1818. Em 1848 publicou, em colaboração com Engels, o manifesto do Partido Comunista, que assinalava o início do movimento socialista na Europa. Na sua análise do capitalismo, Karl Marx trouxe para o terreno da teoria politica a realidade em que viviam os trabalhadores do seu tempo. Segundo Marx, toda a sociedade se divide em exploradores e explorados, toda a história da sociedade não é mais que a história da luta de classes. A polarização classista dividia em duas partes o conjunto da história da sociedade, a burguesia e o proletariado. Pela sua simplicidade, este modelo de análise política fez história e penetrou no coração de milhares e milhares de militantes em todo o mundo. Não era preciso muito para compreender, dum lado estavam "eles" e do outro estávamos "nós". No interior de cada força social, existe uma fracção de classe que dirige política e culturalmente o resto. Para o conseguir, esse segmento social deve poder generalizar os seus próprios valores, a sua própria cultura, o seu próprio programa político, ao conjunto da força social. Deve poder conseguir que o conjunto da força social interiorize e adopte como própria, a estratégia, os valores e o programa político da fracção dirigente. A todo esse complexo processo, através do qual se exerce a direcção da força social na confrontação política da luta de classes, denomina-se "hegemonia". A dominação política, então, não se exerce unicamente com a violência e a repressão do Estado, também se consegue através da direcção política e da consumação da hegemonia. O ponto de partida de Marx é a reivindicação da realidade total do homem, que não é só espiritualidade ou razão, mas necessidade, sensibilidade, matéria. Marx refere que a transformação só é possível se a essência do homem não vier assente na relação do homem consigo próprio, mas, pelo contrário, nas relações exteriores do homem com outros homens e com a natureza que lhe fornece os meios de subsistência; relações que são historicamente determinadas pelas formas do trabalho e da produtividade. As relações de trabalho e da produção constituem a estrutura económica da sociedade, a qual, é por isso, o elemento determinante da realidade humana e da história. A história é feita da actividade humana que se explica nas formas do trabalho e da produção, actividade na qual entram os indivíduos reais com as suas necessidades, o seu trabalho e a sua iniciativa produtiva. Deste ponto de vista, a natureza da personalidade humana e o seu desenvolvimento dependem das formas que assumem historicamente as relações sociais. Para Marx a personalidade humana constitui-se e exprime-se no concreto das relações produtivas e sociais, em plena continuidade com o ambiente natural. Por isso Marx reagiu contra a concepção intelectual de que a educação deveria influir directamente na formação cultural do indivíduo, tendo por base uma realidade aristocrática, completamente estranha à sociedade produtiva. O homem é essencialmente actividade, actividade real, produção. Isto significa que não pode ser considerada educação digna desse nome, aquela que não comporte uma séria e empenhada actividade de trabalho. Só a combinação do estudo com o trabalho produtivo poderá produzir personalidades harmoniosamente desenvolvidas. Na sociedade socialista que Marx preconizara, educação e trabalho estariam unidos com o fim de preparar as gerações vindouras par uma educação técnica multilateral, uma educação politécnica em que a formação social, a formação da inteligência e a formação profissional tenderiam a fundir-se. As tentativas de aplicação coerente e sistemática dos pontos de vista marxistas a respeito da educação só foram concretamente ensaiadas no século XX, depois da 1ª Guerra Mundial, com Anton Makarenko.

Gramsci

Com base na reflexão sobre modelos de pensamento político, Antonio Gramsci tentou pensar a hegemonia em sociedades capitalistas complexas. Não só para aquelas onde a burguesia domina através de uma ditadura feroz, mas também para aquelas onde os segmentos hegemónicos das classes dominantes recorrem à forma mais eficaz de dominação política, a república parlamentar que, não será sinónimo de democracia. O principal objecto de reflexão de Gramsci, desde a sua juventude até à maturidade, foi o problema do poder. Gramsci demarca-se do marxismo catastrofista, segundo o qual, da crise económica do capitalismo surgiria, como por artes mágicas, a revolução socialista. Para o autor, o capitalismo jamais cai por si mesmo, é preciso derrubá-lo. Para isso, é necessário um sujeito organizado que intervenha, que seja activo, que não espere passivamente a crise, como quem espera que caia um fruto maduro de uma árvore. Como pode intervir o sujeito? Politicamente. Mas a intervenção política tem de realizar-se a partir de determinadas relações de poder e de forças, porque o poder não se trata de uma coisa, mas de relações. A modificação das relações de força deve partir de uma situação económica objectiva, mas nunca deter-se aí. Se não se consegue passar ao plano político geral, toda a tentativa revolucionária se encaminha para o fracasso. Foi esse o principal ensinamento que Gramsci extraiu da derrota dos conselhos operários de Turim em 1920. É nessa especificidade política que se coloca o problema de alcançar a hegemonia, outro dos fios condutores na sua obra. Ao reflectir sobre a hegemonia, Gramsci adverte que a homogeneidade da consciência própria e a desagregação do inimigo se realiza precisamente no terreno da batalha cultural. Gramsci embrenha-se na reflexão sobre a cultura, não para tentar legitimar a governabilidade consensual do capitalismo, mas para o derrubar. Que é, então, para Gramsci, a hegemonia? Não é um sistema formal fechado, absolutamente homogéneo e articulado, pois, estes sistemas nunca ocorrem na realidade prática, só no papel, por isso são tão cómodos, fáceis, abstractos. A hegemonia, pelo contrário, é um processo que expressa a consciência e os valores organizados praticamente por significados específicos e dominantes, num processo social vivido de maneira contraditória, incompleta e até muitas vezes difusa. Numa palavra, a hegemonia de um grupo social equivale à cultura que esse grupo conseguiu generalizar para outros segmentos sociais. A hegemonia é idêntica à cultura, mas é algo mais que a cultura porque, além de tudo, inclui necessariamente uma distribuição específica de poder, de hierarquia e de influência. Como direcção política e cultural sobre os segmentos sociais "aliados" influenciados por ela, a hegemonia também pressupõe violência e coerção sobre os inimigos. Por último, a hegemonia nunca é aceite de forma passiva, está sujeita à luta, à confrontação. Por isso quem a exerce, tem de a renovar continuamente, reelaborar, defender e modificar, procurando neutralizar o adversário, incorporando as suas reivindicações, embora desembaraçadas de toda a sua perigosidade. Se a hegemonia não é um sistema formal fechado, as suas articulações internas são elásticas e deixam a possibilidade de operar sobre ele por outro lado, a partir da crítica ao sistema, da contra-hegemonia (à qual a hegemonia permanentemente se vê obrigada a resistir). Se, por outro lado, a hegemonia fosse absolutamente determinante, seria impensável qualquer mudança na sociedade. Assim, ao reflectir analiticamente sobre as relações de poder e de forças que caracterizam uma situação, Gramsci parte duma relação "económica objectiva", para passar de seguida à dimensão especificamente política e cultural onde se constrói a hegemonia. A conclusão a que Gramsci chega, visualizando as relações de forças no seu conjunto, é a seguinte: "Pode assim dizer-se que todos estes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno tem lugar a sua passagem a relações políticas de força para culminar na relação militar decisiva". Portanto, no pensamento de Gramsci "economia", "política-cultura" e "guerra" são três momentos internos de uma mesma totalidade social. Não se podem separar. São graus e níveis diferentes de uma mesma relação de poder, que pode resolver-se, tanto num sentido reaccionário (mantendo o actual tipo de sociedade) como num sentido progressivo, através de uma revolução. Ao fazer a separação entre a cristalização económica por um lado — designando-a por "estrutura" — e a institucionalização política por outro — chamando-lhe "superestrutura" — concebeu que o poder, em termos relacionais, podia resolver grande parte das questões que o marxismo "ortodoxo" tinha deixado sem resposta. Mas o que acontece quando a iniciativa é tomada pelos inimigos do povo? Que fazer quando os segmentos hegemónicos da burguesia tentam, com medidas "progressistas", pôr-se à cabeça das mudanças, a fim de desarmar, dividir e neutralizar os mas intransigentes e radicais? Para pensar esses momentos difíceis Gramsci elaborou uma categoria: a "revolução passiva". Tomou-a de historiadores italianos, mas deu-lhe outro significado. A revolução passiva é para Gramsci uma "revolução-restauração", ou seja uma transformação a partir de cima, pela qual os poderosos modificam lentamente as relações de força para neutralizar os seus inimigos de baixo. Através da revolução passiva, os segmentos politicamente hegemónicos da classe dominante e dirigente tentam "meter no bolso" os seus adversários e opositores políticos, incorporando parte das suas reivindicações, embora despojadas de todo o perigo revolucionário. Como enfrentar essa iniciativa? Tem de ser a partir do movimento popular. A questão complica-se quando certos sectores do poder aplicam medidas "progressistas”. Para Gramsci um aspecto crucial da estratégia revolucionária tinha de ser a luta cultural (e num sentido mais lato, educativa) anterior à emergência de uma crise revolucionária. Em relação à educação, os escritos de Gramsci desenvolveram-se em torno de três temas: o papel a educação como parte do processo de formação da hegemonia cultural nas sociedades burguesas, as possibilidades de educação formal e não formal como lugares de formação de consciência revolucionária, contra-hegemónica anterior a qualquer transição revolucionária e os princípios que devem fundamentar a pedagogia socialista de uma sociedade pós-revolucionária. A teoria educativa de Gramsci apontava para duas lógicas, ou usar a educação para promover a aquisição, por parte do trabalhador, de uma bagagem universal, capacidades cognitivas e práticas, ou o desenvolvimento de uma consciência política, incorporando as experiências da classe trabalhadora na educação. Quando os professores não prestam atenção ao contraste entre o tipo de cultura e de sociedade que ele representa e o tipo de cultura e de sociedade representada pelos seus alunos, o seu trabalho torna-se numa disseminação de retórica e o que temos são escolas meramente retóricas ao serviço de uma ordem política. Em Gramsci a primeira tarefa da política educativa é substituir os intelectuais tradicionais por intelectuais orgânicos. A segunda tarefa é assegurar que este processo de maturação prossiga suavemente. Ele depende da activa auto-dedicação de uma classe à sua própria auto-educação. Para o proletariado, tal significa o domínio das técnicas, segundo as quais, trabalhadores não qualificados se tornariam qualificados e, de uma forma mais abrangente, a auto-transformação que permitisse a cada cidadão governar ou, pelo menos, colocá-lo numa condição geral de alcançar essa competência. Para Gramsci, a filosofia da praxis tenta ultrapassar a filosofia primitiva do senso comum, conduzindo as massas a uma mais elevada concepção de vida, num processo de esclarecimento levado a cabo por participantes auto-conscientes. Isto deveria colocar sob escrutínio todos os elementos sociais, psicológicos, culturais e políticos de um dado bloco ético/moral, incluindo o conhecimento escolar e os currículos.

Ivan Illich

Ivan Illich nasceu em Viena no ano de 1926 e faleceu em Bremen, na Alemanha em Dezembro de 2002. Filho de pai jugoslavo e mãe com ascendência judia, teve de abandonar a Áustria quando tinha cinco anos. A família mudou-se para Roma, onde Illich completou os seus estudos: física (Florença), filosofia e teologia (Roma) e doutoramento em História (Salzburgo). Durante a infância e juventude conviveu com o círculo de nobres russos que se refugiaram na capital italiana depois de terem saído do seu país aquando da revolução comunista de 1917. Foi também em Roma que Illich entrou para o seminário (1951), onde teve como colegas muitos dos futuros diplomatas do Vaticano e onde se ordenou sacerdote. Nos anos 60 mudou-se para o México onde criou o Centro Intercultural de Formação (CIF), com o objectivo de sensibilizar missionários para trabalhar na América Latina. Na década de 70 foi co-fundador do Centro de Informação e Documentação (CIDOC), espécie de universidade aberta, especialmente voltada para os problemas da educação e independência cultural do Terceiro Mundo, sobretudo da América Latina. A partir de 1980, dividiu o seu tempo entre o México, os Estados Unidos e a Alemanha. Nos últimos anos de sua vida, Illich foi professor convidado de filosofia, de ciência, tecnologia e sociedade no estado da Pensilvânia, sendo também docente na Universidade de Bremen onde morreu no dia 2 de Dezembro de 2002. Illich é autor de várias obras, algumas traduzidas em 25 línguas. Nos seus numerosos escritos Illich contesta muitas das suas instituições e estruturas sociais existentes. Ivan Illich faz uma análise crítica das instituições educativas actuais e das suas características e propõe a criação de um sistema alternativo, que rebata a figura da escola na de uma aprendizagem não enquadrada institucionalmente. Segundo Illich, o actual sistema educativo converteu-se num sistema burocrático, hierarquizado e manipulador, tendo como função primordial a reprodução e o controlo das relações económicas. Por toda a parte, o aluno é levado a acreditar que só um aumento de produção é capaz de conduzir a uma vida melhor. Deste modo se instala o hábito do consumo dos bens e dos serviços, que nega a expressão individual, que aliena, que leva a reconhecer as classes e as hierarquias impostas pelas instituições. Os alunos estão sujeitos a currículos extensos e repetitivos, dados de forma demasiado rápida e superficial. Os professores, já habituados a esta rotina, não dão a possibilidade de aprofundar um ou outro tema que mais interesse os alunos, nem são capazes de atender às necessidades específicas de cada aluno. A escola passa assim a ser um local de desigualdades e de conflitos, uma vez que alguns se adaptarão melhor do que outros. Segundo Illich, o facto de a escolaridade ser obrigatória só agrava a situação. Aqueles que não se conseguem adaptar aos temas curriculares obrigatórios e aos métodos de ensino vigentes, arrastam-se durante anos na escola, nada aprendem de válido, perdem a sua auto-estima. Quando finalmente deixam a escola, os alunos não estão preparados para ingressar no mundo do trabalho. Assim, deparamo-nos com jovens desanimados e desapontados, sem grandes perspectivas de futuro. Caso os alunos decidam abandonar a escola antes de terminarem a escolaridade obrigatória, deparam-se com problemas ainda mais graves, porque se, com a escolaridade mínima ainda têm a possibilidade de arranjar emprego mesmo sem formação específica, sem certificação escolar, ainda que mínima, o emprego torna-se quase impossível, ou então, sujeitam-se a empregos menos bons e mal remunerados. Illich defende que, apesar de muitas pessoas terem já consciência da ineficácia e da injustiça patentes no sistema educativo moderno, não são ainda capazes de imaginar alternativas nem de conceber uma sociedade desescolarizada. Daí que se torne necessário criar entre o homem e aquilo que o rodeia novas relações que sejam fontes de educação, modificando simultaneamente as nossas reacções, a ideia que fazemos do desenvolvimento, os utensílios necessários para a educação e o estilo da vida quotidiana. Em alternativa ao actual sistema educativo, Illich propõe a criação de novas instituições educativas, que permitam dar àquele que quer aprender novos meios de entrar em contacto com o mundo à sua volta. A criação de novas instituições educativas propostas por Illich, teria como objectivos principais, permitir a todos aqueles que pretendem aprender o acesso aos recursos existentes, em qualquer idade; facilitar o encontro entre aqueles que desejam comunicar os seus conhecimentos e toda e qualquer pessoa que deseje adquiri-los; permitir aos portadores de ideias novas que se façam ouvir. Segundo Illich, as novas instituições educativas deveriam permitir a qualquer aluno o livre acesso a toda a informação e a todo o conhecimento que pretendesse adquirir. Em oposição aos actuais programas escolares obrigatórios supervisionados pelas instituições, o aluno não deveria ter necessidade de apresentar quaisquer credenciais ou currículo anterior para lhe ser facultado esse acesso. De igual modo, estas novas instituições permitiriam a todas as pessoas a possibilidade de comunicarem os seus conhecimentos, tornando-os acessíveis e disponíveis a todos os interessados, com vista a aumentar e a multiplicar as oportunidades quer de aprender, quer de ensinar. Segundo Illich, trata-se de substituir a pergunta: «O que é necessário que se aprenda?», por «Com que espécie de coisas e de pessoas deve estar relacionado aquele que deseja aprender?». A função das novas instituições educativas seria criar redes disponíveis e acessíveis a todos, um serviço responsável por pôr à disposição do públicoos objectos educativos, isto é, os instrumentos, as máquinas e os aparelhos utilizados para a educação formal, um serviço de troca de conhecimentos, uma lista actualizada de pessoas desejosas de fazer aproveitar os outros da competência própria, mencionando as condições em que desejariam fazê-lo, um organismo que facilitasse encontros de pares. Verdadeira rede de comunicações, registaria a lista das pretensões em matéria de educação daqueles que se lhe dirigissem para encontrar um companheiro de trabalho ou de pesquisa. Serviços que permitiriam estabelecer uma espécie de anuário, onde se encontrassem os endereços dessas pessoas, profissionais ou amadores, fazendo ou não parte de qualquer organismo. Segundo Illich, os objectos materiais constituem um recurso educativo fundamental. O autor enfatiza a importância da utilização e manipulação, quer dos objectos que são concebidos numa perspectiva puramente educativa, quer dos que fazem parte da vida quotidiana. Para permitir o acesso a estes bens materiais, os objectos concebidos com um fim educativo seriam apresentados em bibliotecas, laboratórios, salas de exposição (museus e salas de espectáculo, por exemplo); os outros, utilizados nas actividades diárias, em fábricas, aeroportos, quintas, etc., poderiam ser acessíveis às pessoas que desejassem conhecê-los durante um período de aprendizagem ou fora das horas de trabalho. Na opinião do autor, as pessoas encontram-se, cada vez mais, afastadas da natureza real dos objectos concebidos pela nossa sociedade, uma vez que desconhecem a constituição e o funcionamento da maioria dos produtos criados pela indústria que utilizam no dia a dia. Vive-se num meio que se concebeu e este ambiente artificial vai-se tornando tão impenetrável, como a natureza o foi para os primitivos. No que respeita aos objectos concebidos com uma finalidade puramente educativa, como é o caso dos manuais escolares, livros, microscópios, computadores, etc., o autor considera que o acesso a estes bens materiais é também fortemente condicionado em termos de horários de acesso e de qualificações exigidas aos utilizadores. Sob o pretexto da sua conservação e protecção, o acesso aos mesmos é reduzido, retirando-lhes o seu potencial educativo. Por outro lado, alguns desses objectos, tais como os jogos didácticos realizados no âmbito escolar, são muitas vezes transformados em torneios, perdendo assim o seu carácter educativo e lúdico, desenvolvendo o espírito competitivo. É etiquetando todas as coisas, fazendo delas utensílios educativos, que a escola lhes faz perder a sua virtude viva. Illich propõe assim uma alteração das condições de acesso e utilização desses objectos, de modo a tornar acessíveis o meio físico e os recursos materiais próprios para a educação, devolvendo-lhes o seu valor educativo. Segundo Illich, nas cidades modernas, o facto de as pessoas e, sobretudo as crianças, serem mantidas longe dos centros de actividades (fábricas, indústrias, etc.), sob o pretexto de que são particulares, impede o conhecimento e a compreensão dos métodos de produção. Neste sentido, acusa igualmente as empresas, bem como as entidades ligadas à investigação científica, de quererem, para seu interesse económico, manter a exclusividade no que respeita a conhecimentos técnicos e científicos, métodos e bens de produção, impedindo por isso a sua divulgação e impossibilitando a partilha de conhecimentos. O autor defende, pelo contrário, o reconhecimento do valor educativo destes centros de actividade e a permissão de acesso às respectivas instalações. Illich defende a existência de um serviço de troca de conhecimentos cuja função seria permitir o encontro e a reunião de pessoas que queiram transmitir/receber um conhecimento específico. Essa troca, segundo o autor, seria baseada na demonstração directa por parte de quem pretende transmitir determinado conhecimento. São referidos exemplos como a aprendizagem de línguas, a culinária, a condução, etc. Ao constatar o desaproveitamento de muitas das pessoas capazes de demonstrar determinado conhecimento, Illich manifesta-se contra a exigência de diplomas e currículos aos educadores. Os diplomas representam um obstáculo à liberdade da educação, fazendo do direito de partilhar os seus conhecimentos um privilégio reservado aos empregados das escolas. Considera ainda desprovido de sentido esperar dos educadores que inspirem o gosto de aprender nos alunos, já que acredita que esse interesse existe em cada um. A instrução tem de partir de uma escolha pessoal. Actualmente, de acordo com o autor, não existe partilha de conhecimentos técnicos por parte do profissional moderno, pois a especialização e o monopólio da informação são tidos como uma vantagem competitiva em relação aos demais. Illich defende por isso a criação de centros abertos ao público, em particular nas zonas industriais, que forneçam certas habilitações: saber ler, escrever à máquina, aprender línguas estrangeiras, conhecer a programação, compreender circuitos eléctricos, etc. Propõe ainda um sistema em que aquele que adquira determinados conhecimentos nestes centros, se dedique posteriormente à sua demonstração. Para tal, existiriam organismos e centros de informação encarregues de estabelecer e difundir as listas dos educadores voluntários e dos educandos interessados e as informações sobre ambos. Apareceria uma escola inteiramente nova, constituída por aqueles que teriam ganho a sua educação partilhando-a com os outros. Na perspectiva do autor, os exames curriculares utilizados como critério de escolha pelos empregadores, deveriam ser substituídos por provas práticas de competência, baseadas na demonstração dos conhecimentos. Desta forma, a selecção do profissional seria não só mais justa, como também mais eficiente e vantajosa para o empregador. Basear a escolha, em matéria de emprego, apenas numa competência demonstrada, por oposição a toda a discriminação que parta de um currículo educativo. Illich defende a ideia de que um autêntico sistema educativo deveria permitir a cada um escolher qualquer actividade, para a qual procuraria um par da sua força. O termo pares refere-se a pessoas que, partilhando interesses e aptidões comparáveis, decidem realizar juntas a sua pesquisa, ou que se unem para se exercitar na prática de uma actividade partilhada. Esta definição inclui conjuntos de pessoas interessadas em actividades tão diversas quanto comentar livros ou artigos, praticar determinados jogos, realizar excursões, partilhar conhecimentos de mecânica, ou qualquer outra actividade. Para permitir a aproximação e o encontro daqueles que, num dado instante, partilham um mesmo interesse específico, o autor propõe a organização de reuniões entre crianças desde a mais tenra idade como forma de incentivar a descoberta e partilha de interesses comuns. Propõe ainda a criação de um sistema, ou rede de comunicação apoiada numa base de dados informática, onde cada utente procederia a uma inscrição indicando o seu nome, morada e actividade para a qual pretendesse companheiro(s). As respostas à respectiva solicitação seriam dadas através do correio ou, nas grandes cidades, através de terminais informáticos. Uma tal rede dispondo de recursos públicos seria o único meio de garantir o direito de livre reunião e de preparar os cidadãos para esta actividade fundamental. O direito de reunião livre de pessoas, apesar de ser reconhecido legal e politicamente, é desrespeitado sempre que a lei impõe determinadas formas de reunião que passam por um recrutamento obrigatório, de que é exemplo a Escola. Desescolarizar passa então pela abolição dessa obrigatoriedade, ao mesmo tempo que pelo reconhecimento do direito à participação de qualquer pessoa numa reunião de pares, independentemente da idade ou do sexo. Os edifícios escolares seriam reconvertidos em pontos de encontro de acesso livre para a reunião dos pares, criando-se assim um espaço privilegiado para a troca de ideias. Illich ressalva características que considera compensatórias, como a possibilidade de participação em vários grupos de pares e de reunião de pessoas de diferentes pontos geográficos capazes de permitir partilhar experiências de vida muito diferentes. Segundo Illich, este sistema de comunicação poderia dar origem ao aparecimento de comunidades, ou seja, ao desenvolvimento da vida comunitária à escala local, em muitos casos desaparecida. A rede de comunicações permitiria ainda aos cidadãos uma maior independência das instituições públicas, bem como uma perspectiva mais crítica e livre relativamente aos profissionais creditados que lhes prestam os serviços, cuja competência não pode, de outra forma, ser aferida. A troca de informação através das redes de comunicação, permitiria ao estudante escolher o seu professor, ao doente conhecer o seu médico, etc. A ideia base é a de que se os cidadãos dispusessem de possibilidades de escolha da sua instrução, aumentaria a procura de especialistas nas áreas do seu interesse. Desta forma, a desescolarização da educação contribuiria para dinamizar a procura de indivíduos possuidores de uma competência prática, assegurando a sua independência e, logo, a sua credibilidade. Illich distingue três tipos distintos de competências educativas necessárias ao funcionamento das redes, administradores educativos - encarregues de pôr em funcionamento as redes, ou seja, de garantir a eficiência e permanência das vias de acesso aos serviços administrativos; conselheiros pedagogos - responsáveis por guiar estudantes e pais na utilização das redes, isto é, auxiliar a encontrar o caminho mais apropriado para atingir os respectivos objectivos; iniciador educativo - mestre ou verdadeiro guia, encarregue de auxiliar nos caminhos da exploração intelectual. As duas primeiras são consideradas como verdadeiras profissões educacionais, que visam facilitar os encontros entre os seres desejosos de aprender e aqueles que possam servir-lhes de orientação, permitindo-lhes o acesso aos objectos educativos. Quanto ao iniciador educativo, ser-lhe-ia exigida disciplina intelectual, imaginação vasta e vontade de se associar a outras pessoas para as esclarecer. Neste último caso, estabelecer-se-ia uma relação de mútua estima entre mestre e discípulo, de onde ambos retirariam prazer, o que beneficiaria, em muito, a aprendizagem. Neste sentido, o iniciador educativo tornar-se-ia numa espécie de pedagogo, uma vez que, ao contrário do professor tradicional, teria o poder de agir fora da escola, sobre a sociedade inteira. Em suma, para Illich, a defesa do direito de livre acesso aos instrumentos de ensino e do direito de partilhar conhecimentos e crenças com outros, pressupõe uma revolução educativa que torne livre o acesso às coisas, abolindo o controle que as entidades particulares e as instituições exercem sobre o seu valor educativo; torne livre a partilha das aptidões, garantindo o direito de as ensinar ou de as demonstrar a pedido; torne livre os recursos criadores e críticos dos seres humanos, restituindo a todo o indivíduo o poder de convocar reuniões ou de participar nelas; liberte o indivíduo da obrigação de limitar as suas esperanças de acordo com os serviços que podem oferecer-lhe as profissões estabelecidas.


Makarenko

Anton Semionovich Makarenko nasceu em 1888 na Ucrânia, filho de um operário ferroviário e de uma dona de casa. Aprendeu a ler e escrever com a mãe, como a maioria das crianças da época, e logo depois foi matriculado numa escola primária. Lá teve acesso às disciplinas de Língua Russa, mas não pôde estudar sua língua materna, a ucraniana, proibida pelo império czarista na Rússia, nem Lógica e Filosofia, exclusivas da elite. Aos 17 anos, Makarenko concluiu o curso de Magistério e entrou em contacto com as ideias revolucionárias de Lenine e Máximo Gorki, que influenciaram sua visão de mundo e de educação. A sua primeira experiência em sala de aula ocorreu em 1906, na Escola Primária das Oficinas Ferroviárias, onde leccionou por oito anos. Em seguida assumiu a direcção de uma escola secundária. Mais consciente do modelo de educação que queria aplicar, ampliou o espaço cultural e mudou o currículo com a ajuda de pais e professores. E estabeleceu o ensino da língua ucraniana. A sua mais marcante experiência deu-se de 1920 a 1928, na direcção da Colónia Gorki, instituição rural que atendia crianças e jovens órfãos que haviam vivido na marginalidade. Lá ele pôs em prática um ensino que privilegiava a vida em comunidade, a participação da criança na organização da escola, o trabalho e a disciplina. Publicou novelas, peças de teatro e livros sobre educação, sendo o Poema Pedagógico o mais importante. Morreu de ataque cardíaco durante uma viagem de trem em 1939. Anton Makarenko viveu as grandes transformações históricas do fim do século 19 e do começo do 20: o nascimento das grandes cidades e indústrias, as longas jornadas de trabalho, os movimentos revolucionários contra o império do czar Nicolau II, a Primeira Guerra Mundial e a revolução de Outubro de 1917 que pôs fim à monarquia e instituiu a ditadura do proletariado na União Soviética. Makarenko conhecia, na prática, as necessidades da grande massa pobre da Ucrânia. Os seus problemas não eram diferentes dos enfrentados hoje, a carência afectiva e material dos filhos dos operários, a audácia dos filhos dos burocratas, que não queriam fazer os trabalhos manuais e intelectuais, tão valorizados na sociedade socialista, e a ausência da família. Por isso, ele acreditava que a escola tinha que formar seres participativos por meio de uma organização colectiva e democrática, com muita disciplina e trabalho. E os pais que não conseguiam educar os seus filhos deveriam ser reeducados por essa escola. Makarenko concebeu um modelo de escola baseado na vida em grupo, na autogestão, no trabalho e na disciplina que contribuiu para a recuperação de jovens infractores. Imagine-se um educador que tem como missão dirigir um colégio interno (na zona rural) cheio de crianças e jovens infractores, muitos órfãos, que mal sabiam ler e escrever, numa época em que o modelo de escola e de sociedade estava em causa. Como educar? Por onde começar? Makarenko, professor na Ucrânia (que era parte da União Soviética na época), foi um dos homens que ajudaram a responder a essas questões e a repensar o papel da escola e da família na recém-criada sociedade comunista, no início do século 20. A sua pedagogia tornou-se conhecida por transformar centenas de crianças e adolescentes marginalizados em cidadãos. O método criado por ele era uma novidade porque organizava a escola como colectividade e levava em conta os sentimentos dos alunos na busca pela felicidade, aliás, um conceito que só teria sentido se fosse para todos. O que importava eram os interesses da comunidade e a criança tinha privilégios impensáveis na época, como opinar e discutir as suas necessidades no universo escolar. Mais do que educar, com rigidez e disciplina, ele quis formar personalidades, criar pessoas conscientes de seu papel político, cultas, que se tornassem trabalhadores preocupados com o bem-estar do grupo, ou seja, solidários. Na sociedade socialista de então, o trabalho era considerado essencial para a formação do homem, não apenas um valor económico. Makarenko aprendeu tudo na prática, na base de acertos e erros, primeiro na escola da Colónia Gorki e, em seguida, na Comuna Dzerjinski. Cada etapa de suas experiências foi registada em relatórios, textos e livros. As dificuldades e os desafios têm muitos paralelos com os dos professores de hoje. A ideia do colectivo surge como respeito a cada aluno, oposta à visão de massificação que despersonaliza a criança. O grupo estimula o desenvolvimento individual. Como a instituição familiar (e tudo o mais na então União Soviética) estava em crise, essa foi a alternativa encontrada pelo educador para proteger a infância do seu país. O sentimento de grupo não era uma ideia abstracta, tinha raízes nos ideais revolucionários e Makarenko soube como transformá-la em algo concreto. A colónia era auto-suficiente e a sobrevivência de cada um dependia do trabalho de todos. Caso contrário, não haveria comida nem condições de habitação aceitáveis. Para que a vida em comunidade desse certo, era essencial que cada aluno tivesse claras as suas responsabilidades. "Nunca mais ladrões nem mendigos: somos os dirigentes." Makarenko era conhecido como um educador aberto, mas rígido e duro. Ele acreditava que o planeamento e o cumprimento das metas estabelecidas por todos só se concretizariam com uma direcção muito firme. Por isso, os alunos tinham consciência de que a disciplina não era um fim, mas um meio para o sucesso da vida na escola. O não cumprimento de uma norma podia ser punido severamente, desde que alunos e professores assim o desejassem, depois de muita discussão.
Makarenko publicou em 1938, incompleto, o Livro dos Pais. O objectivo era mostrar a importância da participação da família na escola e como educar as crianças em tempos difíceis. Alguns estudantes moravam nas escolas dirigidas por ele. O educador ucraniano fazia questão da presença dos pais, que eram estimulados a participar de actividades culturais e recreativas. A escola tinha o papel de orientar a família, que deveria encará-la como um órgão normativo. Pais ausentes seriam incapazes de educar uma pessoa forte, madura e inteligente. Makarenko queria formar crianças capazes de dirigir a própria vida no presente e a vida do país no futuro. Exercícios físicos, trabalhos manuais, recreação, excursões, aulas de música e idas ao teatro faziam parte da rotina. A escola tinha que permitir o contacto com a sociedade e com a natureza, ou seja, ser um lugar para o jovem viver a realidade concreta e participar das decisões sociais. Na Colónia Gorki, meninos e meninas eram divididos em grupos de dez, de diferentes faixas etárias. Um representante de cada turma participava nas assembleias e reuniões em que se discutiam as situações da escola: um objecto roubado, a melhoria do prédio, a compra de materiais, a limpeza, os problemas particulares. Sexo e namoro também tinham espaço nas reuniões. Normas e decisões não podiam ser predeterminadas. O primeiro e o último voto eram sempre dos alunos. Makarenko talvez tenha sido o educador que levou às consequências mais radicais as questões do espírito de grupo e do trabalho colectivo. Tudo era discutido entre alunos, professores e a direcção da Colónia Gorki. Embora tenha vivido numa época e num contexto totalmente diferentes dos actuais, vale a pena pensar sobre algumas questões. Será que as crianças e os jovens actuais conhecem de facto o significado de grupo? Ou a ideia do colectivo é abstracta? Os jovens sentem-se responsáveis pela escola e pelo bem-estar de seus colegas? A escola forma pessoas cada vez mais individualistas ou colectivas? Makarenko procurou encontrar respostas para estas questões.

Freinet

Celestin Freinet, nascido em 1897, em França, seguidor de Pestallozi, professor filho de camponeses, socialista em política e muito próximo do marxismo também na concepção geral da realidade, representou a ponta mais avançada da pedagogia de “esquerda” na Europa Ocidental com a sua «pedagogia popular». Uma das tentativas de maior êxito no período que mediou entre as duas grandes guerras mundiais, foi o movimento das cooperativas escolares. As cooperativas escolares, constituídas entre os alunos de uma classe ou de uma escola, iam ao encontro das necessidades da própria escola, ao nível do embelezamento, de novos apetrechamentos didácticos, novas actividades escolares, ou de actividades de beneficência que faziam para o exterior, ou ainda a organização de festas em que participam também familiares dos alunos e outras pessoas da comunidade. À parte os problemas colocados pela gestão das cooperativas escolares, as diferentes actividades organizadas em projectos ou centros de interesse, colocavam os alunos em vivo contacto com o mundo fora das paredes da escola. Como Rousseau, esta pedagogia afirmava o direito da criança a ser feliz e reforçava que o educador deve, antes de mais, demonstrar confiança nas capacidades dos alunos, nas actividades e forças naturais que impelem as crianças a exercitar-se, a dar livre expansão às suas energias.
Para Freinet a actividade natural da criança está no grupo, é cooperativa, mas precisamente por isso não há necessidade de a desviar para tarefas extrínsecas e não naturais. A técnica fundamental, aquela que inicialmente deu nome ao movimento em França e noutros países, foi a técnica da «tipografia escolar»: emprega-se nas classes um pequeno complexo tipográfico, constituído por uma caixinha de caracteres de imprensa, um apequena prensa, um rolo de tinta, etc... A técnica da tipografia, na forma como é considerada essencial no método Freinet, não tem significado senão em articulação com outras técnicas como:
1- O texto livre, que consiste em composições que os alunos elaboram em casa quando têm alguma coisa para dizer, que depois de eleita entre os colegas e trabalhada colectivamente, será impressa;
2- A correspondência interescolar: os textos impressos, ilustrados são enviados a outros alunos de outras classes;
3- O Desenho livre e as gravações em linóleo que acompanham os textos;
4- O cálculo vivo que corresponde aos problemas de aritmética que se colocam aos alunos com a impressão e correspondência;
5- O livro da vida: não existem livros de textos, os textos livres impressos são recolhidos por cada um dos alunos para compor o livro da vida;
6- Ficheiros, constituídos por material de consulta e outro produzido por alunos e professor.
Estas técnicas são actividades de fundo sobre as quais se pode articular toda a espécie de projectos. Umas das razões mais profundas do sucesso das técnicas Freinet foi ter constituído um método democrático, muito divulgado mediante cooperativas de professores, sem apoios governamentais, em muitos países europeus.

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