Texto de Apoio: A história de vida e a formação de adultos
A investigação em Ciências Sociais, devido às características do seu objecto de estudo, utiliza diferentes perspectivas metodológicas, face à complexidade do campo social. Quando a investigação pretende estudar os processos de construção e reestruturação de identidades individuais, de grupo, de género, de classe, num determinado contexto social, as histórias de vida convertem-se num método fundamental. A história das histórias de vida começou por se interessar pelos protagonistas das diferenças – ou seja, pelos outros. A utilização deste método biográfico tem demonstrado ser particularmente útil no trabalho com a pessoa adulta, pois, a revisão completa e ordenada cronologicamente da sua vida ajuda a compreendê-la e a atribuir-lhe sentido. O recurso ao método biográfico é uma perspectiva metodológica que foi largamente utilizada nos anos de 1920 e 1930, pelos sociólogos da Escola de Chicago, animados com a busca de alternativas à sociologia positivista. A Escola de Chicago, centrou-se em realidades como pobreza, exclusão social, imigração, segregação étnica, criminalidade, delinquência juvenil, doença mental. Das investigações realizadas, a que ficou mais célebre, refere-se a uma história de vidas cruzadas dos membros de uma família pobre da cidade do México, Filhos de Sanchez de Óscar Lewis. Nestas investigações, as histórias de vida mostram a teia social que se exerce sobre os mais desfavorecidos, vítimas de desemprego, violência doméstica, divórcio, mortalidade precoce, abandono escolar, marginalidade, suicídio.
Franco Ferrarotti (1988) refere que a aplicação deste método desencadeou importantes debates teóricos no decurso da sua evolução, numa luta contínua pelo reconhecimento do seu estatuto científico, enquanto método autónomo de investigação. Segundo o autor, o interesse crescente nos últimos anos pelo debate sobre esse método responde, por uma lado, à necessidade de renovação metodológica, face a uma crise generalizada dos instrumentos heurísticos da sociologia e face ao carácter exageradamente técnico da metodologia sociológica, fundamentado no axioma da objectividade. Por outro lado, o método biográfico corresponde à necessidade de se conhecer melhor a vida quotidiana. As teorias sociais voltadas para as explicações macroestruturais não davam conta dos problemas, das tensões e conflitos que tomam lugar na dinâmica da vida quotidiana, mostrando-se, portanto, impotentes para compreender e satisfazer esta necessidade de uma hermenêutica social do campo psicológico individual. Nesse contexto, o método biográfico apresenta-se como opção e alternativa para fazer a mediação entre as acções e a estrutura, ou seja, entre a história individual e a história social. A renovação da perspectiva biográfica não é mais que um estudo sobre a pessoa, sobre esse pessoa que a sociedade e as ciências socias pareciam ter esquecido. Na actualidade, os relatos biográficos convertem-se em objecto de estudo de várias áreas disciplinares. Historiadores, sociólogos, etnólogos, professores, educadores, responsáveis pela educação e formação de pessoas adultas renovam o seu interesse pelos documentos pessoais e pelo testemunho do vivido quotidiano. Actualmente, apesar de uma certa indefinição, quer epistemológica, quer metodológica, o "método biográfico" continua a afirmar-se. Poder-se-á sustentar que um dos elementos unificadores e presentes nas perspectivas impulsionadoras do uso dos relatos biográficos ou histórias de vida, reside no facto de este método constituir, antes de mais, uma "linguagem”. Ao reflectir sobre o percurso epistemológico das histórias de vida, aqui entendida como método biográfico, entende-se que pode ser situado em qualquer um de três campos, no campo da investigação, no campo da formação ou no campo da intervenção, conforme os diferentes paradigmas que o configuram.
A história de vida constrói-se com factos, reproduz-se pela oralidade e dispensa pontos de vista e singularidades. A matéria-prima com que se fabricam as histórias de vida resume-se a ouvir e falar. Numa palavra, conversa, praticar diálogo. Dar às palavras o sinal de pergunta ou resposta e dar ao silêncio um lugar actuante, como se se tratasse de um interlocutor que acolhe e não julga; um interlocutor expectante. A construção biográfica tende a tornar-se a finalidade principal da formação de adultos, contudo, a perda de referências culturais, as mudanças sociais, a rapidez da emergência das novas tecnologias obrigam a uma espécie de reconversão das bases educativas nas quais se fundam as histórias de vida. A vida adulta, nos dias de hoje, toma formas inéditas, daí que a construção biográfica enfrente novas condições de existência. O conflito entre jovens e gente mais velha, não é uma questão recente. Cada geração procura conquistar o seu espaço, o que provoca o choque com as tradições dos mais velhos. Os relatos de histórias de vida dos adultos fornecem inúmeros exemplos a esse respeito. Hoje, o futuro, com efeito, está obscurecido por uma espécie de capa que nos impede de representar a própria vida em longo prazo. O sociólogo alemão Peter Alheit refere que o curso da vida parece tornar-se numa espécie de laboratório que funciona sem programação. A vida toma a sua forma, em parte, no vazio e a biografia elabora-se, principalmente no incerto. Essa mudança que parece pôr em causa, o próprio sentido de uma história de vida, tem consequências evidentemente para a formação de adultos. Assim, em função do que muitos sociólogos denominam de desinstitucionalização do curso da vida, a pessoa adulta estará só frente a si própria, depois de ter perdido as suas marcas, aquelas que assegurariam a sua complexa identidade, familiar, escolar, profissional e ideológica. A sua formação não é mais dominada por uma busca pela independência, ela é, sobretudo, mobilizada por uma preocupação pela estabilidade. A biografia do adulto constrói-se, com efeito, num ambiente social no qual o factor económico desempenha um papel preponderante. Não é, pois, surpreendente que o horizonte biográfico se vá modificando. Os diplomas não garantem mais o acesso a um posto de trabalho. O desemprego fragiliza o emprego e o torna cada vez mais inacessível. O fim da vida profissional acontece cada vez mais cedo, num momento em que inúmeros adultos têm dificuldade de encontrar alternativas satisfatórias. Outras transformações sociais modificam o curso da vida. Ninguém sabe do que o amanhã será feito, a primeira reacção consiste em tentar salvaguardar o que se possui. A conservação das tradições e dos hábitos faz às vezes de refúgio, como a manutenção da segurança, onde ela se mostra possível, ainda. Nos contextos menos favorecidos, o horizonte biográfico tende a tornar-se mais trágico. Os adultos perdem esse recurso e avançam tacteando ao sabor dos meios disponíveis. A sua história torna-se num percurso de sobrevivência. De uma maneira geral, os adultos assumem como podem as contradições que habitam as suas vidas. Porém, muitos querem tentar defender-se para fazer face à precariedade e à insegurança. Em todo caso, a atitude crescente de defesa parece corresponder a uma forma de se simplificar a vida. Confrontados pela instabilidade geral que caracteriza o mundo actual, os trajectos biográficos dos adultos são, então, mais aleatórios.
A construção da história de sua vida, como assinala em especial Peter Alheit, está submetida a novas condições biográficas. Convém, todavia, considerar essa mudança de horizonte biográfico na perspectiva da diversidade de ambientes socioeconómicos, da idade das pessoas em questão, assim como das suas dinâmicas pessoais. Os relatos de vida, tal qual são produzidos no procedimento da biografia educativa, constituem, sob esse ponto de vista, um material que permite aprofundar, no seio de uma população homogénea de aprendizes adultos, a transformação das lógicas de construção biográfica. Se para muitos adultos o desenvolvimento da sua vida se passa ‘sem histórias’, são numerosos aqueles que, tendo a sua vida feita de ‘histórias’ complicadas, procuram descobrir um fio condutor. Em razão de mudanças desejadas ou sofridas, devem frequentemente recomeçar em outros lugares, segundo outras orientações profissionais ou outros modos de vida. O curso da vida pode não oferecer mais fases que se encaixem, mas percursos reduzidos a fatias de vida separadas umas das outras, feitas de contrastes, de mudanças de rumo ou de reorganização de modalidades de existência. Assim, quantos adultos não tiveram que aprender a refazer a sua vida enquanto imaginavam ter efectuado escolhas maduras e definitivas. A fragilidade do emprego, os conflitos relacionais, uma saúde defeituosa, constituem alguns exemplos de perturbações que habitam a história de vida de muitos adultos. Quando essas situações se tornam sem saída, é preciso renunciar e recriar, aceitar perder, para poder refazer. Aqueles que viveram essas mudanças sabem o que lhes custou. Mesmo reconhecendo o que aprenderam, não esquecem o sofrimento suportado. Poderá ser diferente? É preciso esperar que sim, desde que se considerem fórmulas de acompanhamento colocadas à disposição dos adultos para ajudá-los a melhor compreender os momentos que atravessaram. Toda a mudança mobiliza um grande gasto de energia e necessita de um trabalho de adaptação em profundidade. Os educadores que propõem soluções rápidas fariam bem em não esquecê-lo. A formação deve ser pensada considerando as descontinuidades da existência, ainda mais que as transformações impostas pela sociedade actual não acontecem sem choque. A formação pode intervir como forma de ajuda a pessoa a retomar o curso de vida, de ajudar a dar forma à sua vida, quaisquer quer sejam as circunstâncias? Tal concepção de formação não deve ser confundida com um trabalho de assistência. Quando o adulto se aflige para dominar as exigências de um projecto ou em conduzir a sua vida, é bom que ele possa dispor de apoio para realizar o que pretende ou para se reorganizar. O trabalho biográfico ocasionado por lógicas de ruptura, obriga a relações de ajuda e acompanhamentos que desbloqueiam as aprendizagens requeridas. A reconstrução do horizonte biográfico necessita de um trabalho de formação, que não se reduz a um único registo psicológico de desenvolvimento pessoal. Ela aponta para uma globalidade, feita da aliança de saberes múltiplos e de aprendizagens complementares. O recurso à formação ainda é considerado, por poucos, uma confissão de fraqueza. Somente aqueles que fizeram experiências de aprendizagem que os conduziram para outras escolhas, ou para outros comportamentos, sabem até que ponto esses apoios exteriores lhes foram úteis. Eles reconhecem que a sua vida não teria tomado a mesma orientação biográfica se estivessem privados de suportes formadores. É tempo de reconhecer que são necessárias aprendizagens para fazer face às dificuldades que perturbam a vida adulta. A formação, monopolizada pelo desenvolvimento pessoal e profissional, deve ser oferecida àqueles que precisam de apoios formadores para conduzir a sua vida adulta. O testemunho dos relatos biográficos é fundamental nesse caso. De modo geral, os relatos biográficos deixam transparecer os quadros de referência mediante os quais os adultos dão sentido à história da sua vida. Segundo Ruiz e Ispizúa (1989), através da história de vida procura-se conhecer a totalidade de uma experiência biográfica no tempo e no espaço, desde a infância até ao momento presente, considerando o indivíduo e todos os que entram em relação significativa com ele, desde a família às relações de amizade, escolar, social, bem como a definição pessoal da situação, a mudança pessoal e de sociedade. As histórias de vida têm um carácter diacrónico, daí que o investigador procure identificar a ambiguidade e a mudança, tentando descobrir as mudanças e ambiguidades pelas quais a pessoa vai passando no decorrer da sua vida, bem como dúvidas, interrogações, contradições, compreender a visão subjectiva com que cada um se vê a si mesmo e ao mundo, como interpreta a sua conduta e a dos demais para se adaptar a esse mundo exterior. Segundo Pineau y Legrand (1993) a história de vida como processo investigativo deve incluir três momentos:
- Momento exploratório. Ao realizarmos a entrevista com a pessoa devemos conhecê-la um pouco, um pouco da sua vida, do seu contexto social e profissional. No momento da entrevista já deve haver alguma relação entre entrevistador e entrevistado para evitar momentos de tensão. O narrador deve confiar no investigador. Na fase exploratória já há algumas conversas em que o narrador conta, não a sua vida, mas um dia da sua vida, as suas rotinas diárias, etc… é o momento de estabelecer confiança e simpatia. É o momento de destruir barreiras. É a fase da recolha da informação.
-Momento descritivo. É a fase de organizar a informação e dar-lhe sentido. Dá uma primeira imagem da história de vida. É o primeiro resultado obtido que permite iniciar a interpretação do social. Na descrição deve estar presente a etnografia dos espaços relativos ao sujeito estudado, nomeadamente casa, trabalho, recreação, cenários de vida a que atribui importância. A fase descritiva permite reconstituir a vida da pessoa, as suas relações pessoais, profissionais, institucionais (diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és…), conflitos, percepções, significados
-Momento analítico. As histórias de vida têm um movimento em que se pretende passar da análise da história individual à análise da vida social. Por vezes, as histórias de vida, na sua fase exploratória, são relatos desconexos e espontâneos que passam a descrições coerentes. Com base num reflexão crítica vão se definindo espaços vitais e situações mais fortes carregadas de significado de acordo com o objecto de estudo. Nesta fase há que dar um salto da reflexão concreta a uma reflexão mais teórica. É o momento de ultrapassar o conhecimento do senso comum. Para isso o investigador terá de debruçar-se tranquilamente sobre cada um dos cenários mais importantes e sobre as situações mais críticas para reflectir sobre elas. A história de vida é a narrativa que cada pessoa faz de si mesmo. As histórias e as narrativas são lugares comuns na vida quotidiana. As narrativas ajudam a dar sentido aos acontecimentos da nossa vida. A história é a reconstrução da memória através de uma narrativa, individual ou colectiva, e ao mesmo tempo, pode constituir um mosaico de lembranças quando passa a ser o conjunto de histórias de um determinado grupo social. A narrativa consolida valores e norteia a compreensão do presente, para o indivíduo e o grupo. Reconstruir essa narrativa é uma forma de repensar a história de vida do entrevistado. As pessoas são, ao mesmo tempo, agentes e narradores das suas narrativas. As narrativas produzidas através dos relatos biográficos permite articular biografia e história, permite perceber como o individual e o social estão interligados, como as pessoas lidam com as situações da estrutura social mais ampla que se lhes apresentam no seu dia a dia. Permite reflectir a respeito da memória para além do que fica em registo, permite interpretar o que corresponde à realidade, mas também o que corresponde a uma certa “invenção” da realidade. Permite também recuperar aquilo que está mais escondido e que a narrativa pode ajudar a desbloquear. As histórias de vida são constituídas por relatos que se produzem com o objectivo de reproduzir uma memória pessoal ou colectiva, que faça referência ao modo de vida de uma pessoa ou comunidade num determinado período da vida dessa pessoa ou comunidade. Este é o principal aspecto que diferencia a história de vida de outros materiais como histórias pessoais, contos populares, tradição oral. É uma investigação apoiada em instrumentos privilegiados da pesquisa narrativa (as notas sobre o terreno, o diário, as cartas, o diálogo, a entrevista), para que, a partir de fragmentos do passado, se possa reconstruir a sua história. Na história de vida, a análise dos relatos assume um significado mais amplo, quando inscrito num marco teórico ou num contexto que lhe atribua sentido, pois, sempre que se dispensam valores, factos políticos, contextos históricos, a tentativa de entender a situação em estudo fica mais enfraquecida. Um relato biográfico é um documento de recolha de informação sobre uma experiência vivida por uma pessoa e contada pelas suas próprias palavras. É um tipo de investigação qualitativa de carácter descritivo em que o relato pessoal adquire fundamental importância. Com o relato biográfico pretende-se conhecer a realidade de uma pessoa através das suas próprias palavras, procurando apreender o que de mais importante é para essa pessoa, significados que atribui às “coisas”, perspectivas sobre a “vida” e a forma como “ lê” o mundo. Os relatos biográficos todos têm como ideia essencial que a pessoa é um ser de histórias, que as pessoas se compreendem contando histórias sobre eles próprios e sobre os outros e escutando as histórias que as outras pessoas têm para contar. O relato biográfico pode ser visto como um "lugar da palavra", situando-se não na relação interindividual, mas na aproximação intersubjectiva, na aproximação ao Outro, ao mesmo tempo, um meio viabilizador de uma expressão "em espelho". Uma vez que a vida quotidiana é vivida diferentemente segundo as idades e as personalidades, o relato biográfico é um verdadeiro espelho do sujeito enquanto actor, ser social, ser cultural e ser comunicativo. Ouvir a voz das pessoas ensina que o relato de vida é de grande interesse quando falam do seu trabalho, sendo o ambiente socioeconómico e sociocultural dimensões chave do que as pessoas são, do sentido do “eu”. O estilo de vida, as suas identidades e culturas ocultas, a profissão, os problemas, podem ajudar ao investigador a ver as pessoas em relação com a história do seu tempo, permitindo compreender a história da vida da pessoa no contexto da história da sociedade. Através do relato biográfico a pessoa redescobre o lado agradável de falar de si e explorar, sem apreensões, mais um passado reconstituído fielmente do que um futuro incerto. Igualmente importante no relato biográfico é também o seu carácter de não neutralidade para quem fala da sua vida. As recordações não são neutras porque recordar a prática do dia a dia já vivida não é somente recordar factos, de uma forma consciente, mas uma questão de reviver certos acontecimentos, ser capaz de os reordenar, dando forma a sentimentos, estabelecendo relações entre o que foi vivido. Por outras palavras, os relatos biográficos, podem consistir numa reconstrução que envolve, de forma consciente e reflexiva, a elaboração de grande parte da vida da pessoa, incluindo experiências pessoais e profissionais, ao mesmo tempo que fornece uma interpretação dos episódios vitais e da relação que a pessoa tem com eles. No fundo o estudo dos relatos biográficos consiste em tentar compreender como as pessoas experienciam o mundo, pelo que à luz desta ideia a educação também se faz na construção e reconstrução de histórias pessoais. A escolha deste método não reside nem no facto de constituir uma simples técnica de investigação, nem em ser uma técnica de animação, mas sim na sua adequação enquanto abordagem metodológica ao objecto que se pretende estudar. Num tempo em que se redescobre o valor do quotidiano, do local, do singular, os relatos de vida constituem um momento de fascínio tanto para o que relata como para o que investiga.
Segundo Guimarães (2005) o Relato de Vida é completo se, à partida, não fica de fora nenhuma trajectória de vida e cobre a globalidade da existência do narrador. Há dois tipos de materiais que podem ser utilizados na abordagem biográfica, os materiais biográficos primários, isto é, as narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em geral através de entrevistas realizadas em situação face a face e os materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas, documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não tiveram por objectivo servir a fins de pesquisa. Qualquer produto auto-revelador, que produza informação intencional ou não, que contemple a estrutura, a dinâmica e funcionamento da vida mental da pessoa, pode definir-se como documento pessoal. Relativamente aos materiais biográficos primários, através de entrevistas pretende-se valorizar o testemunho de pessoas que vivenciaram ou vivenciam as situações e problemas suscitados pelo Estudo. Os depoimentos, além de serem utilizados como fontes de pesquisa, também recebem o estatuto de documentos, formando acervos que são organizados em arquivos, podendo ficar à disposição tanto do investigador como da pessoa estudada. Tecnicamente entrevistar é estabelecer uma relação comunicativa que está sempre presente em todas as formas de recolha de dados orais. Na recolha desses dados orais (entrevistas, depoimentos e histórias de vida) a diferença entre histórias de vida e depoimentos está na forma específica de agir do investigador ao utilizar cada uma destas técnicas durante o diálogo com o narrador. O termo entrevista pode ser usado para designar o momento em que investigador e entrevistado estão frente a frente, e o termo depoimento serve para indicar o resultado dessa relação comunicativa. Depoimento é uma técnica utilizada para obter declarações de um entrevistado sobre algum acontecimento no qual tenha tomado parte ou que tenha testemunhado. A entrevista pode-se esgotar num só encontro, os depoimentos podem ser muito curtos, residindo aqui uma das grandes diferenças com as histórias de vida. Toda a história de vida encerra um conjunto de depoimentos (Queiroz, 1991). Quando se trabalha com um conjunto de depoimentos, cada depoimento contribui para a investigação, isolando acontecimentos ou indivíduos, complementando informações, oferecendo os elementos necessários para a construção do contexto social ao qual a investigação se refere. A trajectória de vida do entrevistado é a porta de entrada para a realização da leitura dos depoimentos que devem ser reorganizados cronologicamente e de forma coerente. Inicialmente o investigador irá deparar-se com uma aparente desordem nos depoimentos, a qual precisará de ser superada para que se organize o método de interpretação das informações relacionadas com o problema da investigação. Reorganizar um depoimento significa identificar recorrências e agrupá-las, ordenar a narrativa num eixo diacrónico. Essa diacronia deve ser construída tanto para os depoimentos considerados isoladamente como para construir diferentes cenários espacio-temporais que situam acontecimentos inscritos num conjunto de depoimentos. Num depoimento podem considerar-se vários aspectos. Primeiro que tudo, o Tema que, em geral, é oferecido ao entrevistado e tem estreita relação com o problema de pesquisa, daí a importância do guião de entrevista que permita um bom desenvolvimento do tema. Depois, o Episódio que é o elemento mais próximo da organização do texto do depoimento. Os episódios são parcialmente orientados pelo guião da entrevista e marcados por recortes espacio-temporais, configurando-se como unidades de desenvolvimento da narrativa e estando relacionados com as diversas fases da vida do entrevistado. Cada episódio, além de poder apresentar sub-temas, inclui um conjunto de marcos cronológicos e espaciais. Ao se trabalhar com um conjunto de depoimentos, identificam-se determinadas Referências, ou uma referência comum, uma data, por exemplo, que poderá auxiliar na construção do eixo diacrónico ao qual se prendem as narrativas. A citação de datas, locais, acontecimentos do domínio público e personalidades públicas permite uma leitura conjunta e a construção de um contexto onde estão inscritas as lembranças do entrevistado. Essas referências situam episódios e entrevistado num quadro mais amplo que encerra um determinado Motivo que precisa ser identificado. O motivo é o sub-tema particular, é o elemento que deve ser entendido como aquele que distingue um episódio de outro, a partir da significação que ele encerra no conjunto do depoimento. Finalmente a Trama que é a maneira como o entrevistado organiza o seu depoimento, sendo percebida pelo encadeamento dos episódios. Cada entrevistado faz o seu depoimento evidenciando uns aspectos e omitindo outros. A trama identifica a disposição pessoal do entrevistado que está relacionado com a sua percepção do real. Uma percepção orientada por valores sócio-culturais e que individualiza um depoimento em relação a outro, ainda que sejam construídos com base num mesmo tema. Convém referir que a matéria prima dos depoimentos, com os quais o investigador trabalha na recolha de dados orais, são as lembranças. As lembranças não vivem no passado, precisam de um tempo presente para serem recolocadas face a um sentido relacional. As lembranças não se apresentam isoladas e envolvem factos e pessoas. Através da entrevista procura-se que a pessoa recorde através de associações mais ou menos livres, pode não se lembrar da data precisa de um acontecimento, mas lembrar-se, mais ou menos, quando ocorreu. À medida que os acontecimentos se distanciam no tempo, há a tendência para os recordar sob a forma de acontecimentos, de entre os quais lembram melhor uns que de outros. Segundo Halbwachs (1990) as memórias individuais são construídas a partir das experiências do indivíduo no interior de grupos sociais. Para o autor, a memória é um fenómeno social que se manifesta de forma colectiva, individual ou histórica. É colectiva porque está relacionada coma vida da pessoa e em que o passado faz parte da consciência de um grupo social. A memória individual é um ponto de vista sobre a memória colectiva. A memória histórica é uma forma de conhecimento do passado. Recordar constitui um acto de conhecimento (cognitivo), que o indivíduo com um certo distanciamento produz sobre situações vividas no passado. Na maior parte das vezes, recordar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com ideias de hoje, experiências do passado. O indivíduo ao recordar, oferece uma descrição dos acontecimentos ocorridos que supõem já uma certa análise desses mesmos acontecimentos, dada a distância temporal em que ocorreram e a sua maneira de avaliar essas experiências vivenciadas. A ideia de que a memória tem valor social potencia cada pessoa a tornar-se agente da sua história de vida e, também, da história do grupo a que pertence. De acordo com Pollak (1992) e Bosi (1995), as memórias relembradas vêm carregadas tanto da marca da história pessoal do entrevistado como também trazem referências aos contextos sócio-culturais por ele vivenciados. Assim, a história, com as facetas, pessoal e social, da pessoa entrevistada, é construída a partir dos depoimentos orais (as narrativas) que dependem da memória do entrevistado. Mas, memória não é história, a história é a narrativa que se constrói a partir da memória, daquilo que o entrevistado se recorda. E memória não é sinónimo de depósito de tudo o que aconteceu na vida da pessoa, a memória é selectiva, pois, só guarda o que, por qualquer razão, tem ou teve algum sentido na vida da pessoa. A memória é algo vivo que, ao ser recordada, o passado e o presente vão se embaralhando no presente. A memória vai fazer apelo às lembranças do passado e, o que vem à recordação é o que é relevante para o narrador. Portelli (1997) refere que trabalhar com memória significa trabalhar com algo que está em processo e com um processo que é singular. Ou seja, as histórias relatadas, mesmo que parecidas, possuem as suas particularidades, a sua própria identidade. Cada narrativa é única e deve ser tratada como tal. Pollak (1989) denominou de memórias subterrâneas, as memórias que estão guardadas de modo muito profundo na mente, ou mesmo inconscientemente, e que podem vir a aflorar, sendo recuperadas aos poucos, quando motivadas por razões do tempo presente. Segundo Montenegro (1997), quando se trabalha com processos de rememoração e é proposto à pessoa entrevistada vivenciar a experiência de retorno ao passado, ela recorre às percepções e influências que as experiências mais recentes lhe proporcionaram, o que lhe permite a construção da compreensão dos próprios processos de constituição da sua história de vida ou até mesmo da identidade pessoal e profissional. Rememorar o passado não significa trazer de volta ao presente os acontecimentos vividos exactamente tal como ocorreram, mas reconstituí-los através da vivência actual.
(Nota: este texto não apresenta referências bibliográficas. Os alunos deverão fazer essa pesquisa)
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