2006-06-01

A história da Maria

Comunicação: A Maria aprendeu a ler
Era uma vez um a menina, chamada Maria, que nasceu e cresceu no campo, no interior da serra algarvia. Maria era a filha mais nova de uma família humilde, cujo sustento provinha de um pequeno rebanho de ovelhas e cabras. Os seus pais vendiam o leite, a carne e a lã dos animais para poder comprar os bens essenciais que não podiam produzir, como por exemplo tecidos para fazer as roupas para os seus filhos. Os pais de Maria tinham uma pequena horta, no fundo do quintal da pequena casa onde viviam, onde cultivavam quase todos os alimentos que consumiam. Consoante a altura do ano, colhiam batatas, alhos, cebolas, couves, laranjas, maçãs, pêssegos, favas, feijão, etc., com os quais alimentavam os seus filhos. Criavam também porcos, galinhas e coelhos, cuja carne e ovos consumiam durante o ano inteiro. A família de Maria, apesar de pobre, era muito unida e todos se sentiam muito felizes. Para poder ajudar a família, Maria começou a guardar o rebanho que lhes pertencia, tinha apenas cinco anos. As suas brincadeiras de infância consistiam em correr nos campos, nadar nas ribeiras, brincar com os animais e com as outras crianças da sua aldeia. A melhor amiga de Maria, Helena era a filha única da família mais abastada da pequena aldeia onde viviam. De manhã bem cedo, Maria ia levar leite fresquinho à casa de Helena, e durante algum tempo, ficava a brincar com Helena, conversando muitas vezes, sobre o que queriam se quando crescessem. Helena queria ser professora, porque gostava muito de livros, e sempre que podia, esgueirava-se para a biblioteca do pai, passando tardes a ver as lindas paisagens de países que nunca conhecera, ilustradas nos seus livros favoritos. Não sabia o que diziam aquelas letras, mas sonhava com o dia em que iria compreende-las todas. Por outro lado, Maria queria ter o seu próprio rebanho de ovelhas quando crescesse e ser tão feliz como era a sua família. Guardando o seu próprio rebanho, poderia sentir-se livre, ao correr pelos campos enquanto pastoreava os animais. Era pastora que Maria queria ser quando fosse grande.
O tempo passou, e Helena foi estudar para Faro, que era a cidade mais perto da sua aldeia, onde poderia estudar. Um dia, ao entregar o leite na casa dos pais de Helena, Maria tinha uma agradável surpresa à sua espera... uma cartinha da sua amiga. Maria ficou tão feliz, que apertou a carta contra o seu pequeno coração e correu, correu, pelos montes, até cair de tão cansada. Nessa altura, olhou para a carta da amiga, contemplou os campos, e só depois se sentiu preparada para matar saudades da sua amiga. Foi nesse preciso momento, que Maria se apercebeu de importante detalhe... não sabia ler. Como poderia ler a carta da sua amiga, se não entendia o que queriam dizer aqueles desenhos todos, que sabia que eram letras? Foi nesse momento que Maria decidiu, que queria aprender a ler e a escrever, para poder ler as cartas da sua amiga, e para ela própria, poder também escrever cartas a Helena. Quando regressou a casa para almoçar, Maria pediu logo à mãe, para a mandar estudar, porque tinha decidido aprender a ler e a escrever. Disse-lhe que queira saber ler as cartas de Helena, e também ela poder escrever as suas próprias cartas à amiga. Podia também, ler as cartas que o irmão da sua mãe escrevia à família, nos aniversários, e nas alturas festivas, sem terem que recorrer aos pais de Helena. Mas a sua mãe, rapidamente lhe explicou que a sua família não tinha posses para a mandar estudar para a cidade, e que precisavam dela nos campos, a guardar o rebanho. Maria ficou muito triste, mas compreendeu a sua mãe. Sabia que a sua família tinha poucos recursos, e que a sua ajuda era muito importante para o sustento da família. No entanto, Maria ficou com o desejo secreto, de um dia aprender a ler e a escrever, assim como ter o seu próprio rebanho. Mas o tempo passou, e nunca surgiu uma oportunidade para que Maria aprendesse a ler e escrever. Os anos foram passando e cada vez mais, Maria tinha uma grande tristeza por não ter tido oportunidade de ir à escola.
Maria cresceu, casou, teve quatro filhas, e nunca chegou a ter o seu próprio rebanho, assim como nunca chegou a aprender a ler e a escrever. Quando casou, foi a sua impressão digital, que substituiu a sua assinatura na certidão do casamento, assim como já tinha sido a sua impressão digital que figurava no seu documento de identificação. Muitos anos depois, quando as suas filhas cresceram, Maria fez questão que todas fossem à escola, para não terem o mesmo desgosto que ela própria carregava, por não ser alfabetizada. O tempo foi passando, e Maria nunca conseguiu aprender a ler e escrever. Conhecia bem os campos, a vida, as pessoas, a sua terra, já tinha visitado a cidade várias vezes, mas nunca aprendeu a ler e a escrever.
Muitos anos mais tarde, Maria já era velhinha, quando foi iniciado um processo de alfabetização de adultos na sua aldeia. Ora aí estava finalmente a sua oportunidade para aprender a ler e a escrever. Iria finalmente poder assinar o seu bilhete de identidade, substituir a impressão digital que figurava na sua ficha no banco pela sua assinatura, ler as cartas de Mariana ( a sua filha que vivia na Suíça), escrever-lhe, escrever o nome dos netos, ler as facturas da electricidade... tanta coisa, tanta coisa que poderia fazer, agora que iria aprender a ler e a escrever!
A história que vos conto, que poderia ser de uma menina qualquer, é-me no entanto, uma história muito familiar, uma vez que a Maria desta história foi a minha avó materna. A minha avó, aprendeu a ler e a escrever quando tinha 64 anos, e fez questão de substituir a sua impressão digital que figurava no seu bilhete de identidade e na ficha bancária, fez questão de passar a assinar o cheque da sua reforma com letras, com o seu nome, ao invés da sua impressão digital, fez questão de passar a ser ela a ler as cartas da filha que estava na Suíça, assim como a ser ela a escrever com o seu próprio punho, as cartas que enviava frequentemente à filha, dando-lhe notícias da família. Tenho certeza que uma das maiores alegrias que teve no fim dos seus dias, foi exactamente o facto de ter tido finalmente a oportunidade de aprender a ler e escrever, como sempre desejou desde pequenina, sonho que a vida não permitiu na sua infância ou juventude, mas que viu concretizado, antes do fim dos seus dias entre nós.
Este programa de alfabetização que decorreu em Martinlongo, derivou do PNAEBA (Plano Nacional de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos), elaborado em 1979. Assim, e segundo a lei que regulou este programa, “ a actividade do Estado em matéria de alfabetização e educação de base dos adultos é definida no Plano Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos.” Ainda segundo o decreto lei, o PNAEBA tinha como objectivo a eliminação sistemática e gradual do analfabetismo e o progressivo acesso de todos os adultos que o desejassem aos vários graus da escolaridade obrigatória, incumbindo ao Estado, assegurar o ensino básico universal e eliminar o analfabetismo. Esta iniciativa estatal devia concretizar-se pela acção conjunta dos órgãos de administração central e local, respeitando o princípio da descentralização administrativa, sendo que o Estado “reconhece e apoia as iniciativas existentes no domínio da alfabetização e educação de base dos adultos, designadamente as de associações de educação popular, de colectividades de cultura e recreio, de cooperativas de cultura, de organizações populares de base territorial, de organizações sindicais, de comissões de trabalhadores e de organizações confessionais” Lei n.º 3/79, de 10 de Janeiro. A alfabetização e educação de base deveriam ser entendidas na dupla perspectiva da valorização pessoal dos adultos e da sua progressiva participação na vida cultural, social e política, tendo em vista a construção de uma sociedade democrática e independente. O programa de alfabetização de adultos, que decorreu em Martinlongo, teve algumas especificidades relativas ao contexto onde decorreu ( a sua população alvo, e o local meio-rural), sendo que no restante, foi em tudo semelhante ás outras iniciativas de alfabetização que decorreram na altura. Assim, este programa era aberto a todos os indivíduos com idade superior a 18 anos, que nunca tivessem frequentado a escola, ou que não soubessem ler ou escrever. Os núcleos eram constituídos através da inscrição de cerca de 15 pessoas, e o material básico para o seu funcionamento (quadros, cadeiras e material pedagógico), foram assegurados pela Câmara Municipal de Alcoutim, sendo que a “sala de aula funcionava” na Casa do Povo. As “aulas” tinham a duração diária de 3 horas, durante 5 dias por semana. Por vezes, o quinto dia semanal ficava reservado para o acompanhamento e formação pedagógica dos educadores. Os educadores não precisavam de ser necessariamente professores formados, bastava que tivessem o ensino médio. A educadora de Martinlongo tinha o 11.ºano, tendo concluído o 12..º no decorrer da acção, e era oriunda da comunidade ( a maior parte dos educadores eram oriundos da comunidade). Estes educadores recebiam uma bolsa – auxílio. Como se baseada nas reais condições socioculturais e económicas dos alfabetizandos, havia flexibilidade no atendimento, sendo os núcleos de alfabetização organizados no contextos da acção, para que os alfabetizandos não tivessem necessidade de se deslocar. A nível de orientação metodológica, a alfabetização decorreu segundo o “Método Paulo Freire. Foram utilizados os princípios político-pedagógicos da teoria educacional de Paulo Freire, que assentam na concepção libertadora da educação, “evidenciando o papel da educação na construção de um novo projecto histórico, a teoria do conhecimento que parte da prática concreta na construção do saber, o educando como sujeito do conhecimento e a compreensão da alfabetização não apenas como um processo lógico, intelectual, mas também profundamente afectivo e social.( Gadotti, 1996)
O alfabetizando deveria ser sujeito do conhecimento, e o processo de alfabetização não se resumiria a um processo meramente lógico e intelectual, mas também profundamente afectivo e social. Assim, ainda segundo Gadotti, o processo de alfabetização deveria possibilitar aos educandos uma leitura critica da realidade, contribuir para o desenvolvimento da consciência política dos educandos e dos educadores envolvidos, assim como, reforçar o incentivo à participação popular e à luta pelos direitos sociais do cidadão. Na minha opinião, um dos objectivos mais importantes deste programa, era que este pretendia também reforçar e ampliar o trabalho dos grupos populares, ou associações que já trabalhavam com alfabetização de jovens e adultos. Este programa como já referi, não ambicionava “apenas” alfabetizar. As razões, os porquês, da acção, eram tão importantes, como a própria alfabetização. Proporcionar à população os mecanismos da escrita alfabética, que não os dominava, pressupunha alargar os horizontes dessas pessoas. Proporcionar-lhes uma consciência crítica, que as ajudasse a fazer uma melhor leitura do mundo que as rodeava. O domínio da cultura escrita, aumentar-lhes-ia a possibilidade de intervenção. O trabalho de educador exigia que este tivesse compromisso social com o grupo com que actuava. Competia-lhe construir a sua prática de modo crítico e reflexivo. Isso exigia encontros de planeamento, discussão, estudo e aprofundamento teórico constante, pois educar exige uma renovação continua. A proposta pedagógica deveria então ser transformadora, na medida em que se propunha contribuir para a transformação social, numa construção de uma nova sociedade. A pedagogia deveria ser democrática ao educar na democracia, sustentando esta prática na participação, no diálogo e na crítica. As actividades deveriam ser entendidas como um meio, e não como fim, num processo contínuo. Facilmente se percebe que estas práticas bebiam na práxis politico-pedagógica freireana, a sua orientação, de forma a atingir os seus objectivos. Os educadores reconheciam os conhecimentos dos jovens e adultos, uma vez que a sua alfabetização partia desses conhecimentos e das suas vivências, adquiridas no seu percurso de vida em sociedade. Era portanto, utilizada uma metodologia, que buscava garantir a mediação entre o indivíduo e o conhecimento, desenvolvendo-se um processo de ensino-aprendizagem, pautado em conteúdos significativos e contextualizados. A metodologia deveria enfatizar a conscientização dos indivíduos, como sujeitos históricos e participantes, ampliando o campo do conhecimento, fornecendo elementos necessários à educação que possibilitassem a promoção da integração social. Face ao exposto, considero que esta iniciativa é quase perfeita a nível ideológico, sendo que se tivesse de facto se concretizado, tal como foi planeada, teria sido extremamente benéfica para o país, na luta contra a erradicação do analfabetismo. No entanto, num balanço global, é forçoso reconhecer que esta medida não correspondeu, aos objectivos propostos. Segundo Licínio Lima (1996) a educação de adultos, nunca chegou a ser uma prioridade da política educativa. Ainda segundo o Licínio Lima o seu carácter marginal acentuou-se mesmo, durante os anos 80 e 90, em que se assistiu a uma desvalorização, fragmentação e desarticulação do sector da educação de adultos. Esta evolução negativa, não é dissociável, segundo este autor, de uma visão instrumental da educação, tributária das concepções neoliberais.
Principalmente nesta disciplina, entre outras do curso, despertou-me para o nosso papel central na luta pelo direito à educação na formação de uma cidadania activa, e na construção de uma democracia integral, enquanto futuras profissionais de intervenção comunitária. A máquina do estado estava, e está, estruturada para servir outra lógica, caracterizada pelo autoritarismo da burocracia. A construção de uma parceria, requer então, não só uma relação democrática com as entidades da sociedade civil, mas também acções voltadas para a reforma do aparelho do estado, no sentido de dota-lo das condições necessárias para o exercício da transparência administrativa, por forma a agilizar as suas acções e torná-lo permeável ao controle da sociedade. A construção de uma parceria entre os movimentos sociais e o estado, com as suas respectivas características e heranças, é necessariamente um processo conflituoso. Portanto, a mediação explicita uma pedagogia democrática no tratamento dos temas dos conflitos, é indispensável para torna-los fontes de aprendizagens capazes de modificar o comportamento dos actores envolvidos. Nesse contexto, nós, enquanto alunas de Educação e Intervenção Comunitária, poderemos vir a ter um papel crucial, no reforço do funcionamento democrático da participação e do poder dos cidadãos, na gestão pública em geral, e da sua própria situação em particular, sendo a educação de adultos uma ferramenta determinante, senão, o único caminho, para se alcançar tão desejado (mas não impossível) crescimento.
Referências bibliográficas:
ARCO, J. (2006) . Da Educação Escolar à Educação de Adultos. Comunicação Pessoal.
ARCO, J. (2006) . PNAEBA (1979). Comunicação Pessoal.
ARCO, J. (2006) . Educação de Adultos. Comunicação Pessoal.
ARCO, J. (2006) . Educação Popular. Comunicação Pessoal.
BRANDÃO, C. (2005). Paulo Freire, O MENINO QUE LIA O MUNDO. Uma história de pessoas, de letras e de palavras. São Paulo: Unesp.
FREIRE, P. (1979). Educação e Mudança. Rio de janeiro: Paz e Terra.
FREIRE, P. (1987). A pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra
FREIRE, P. (1999). A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez Editora
GADOTTI, M. (org.) (1996). Paulo Freire. Uma Biobibliografia. Brasília. Cortez Editora. Unesco. Instituto Paulo Freire.
MELO, A. (1991). "Educação e formação para o desenvolvimento rural", in Forum
Autora: Natércia Afonso

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