2006-03-24

Colóquio na Biblioteca - 24 de Março

Texto da comunicação proferida na sessão de abertura do Colóquio organizado pelo grupo de Práticas na Associação APATRIS, no dia 24 de Março na Biblioteca Municipal de Faro

“Um pontapé no preconceito”
Vivemos em Portugal numa sociedade que apregoa valores democráticos mas que pouco faz para combater a injustiça social, a discriminação, a exclusão. Na nova estrutura social a exclusão é um fenómeno vinculado a várias dimensões, como a pobreza, o sexo, o domínio da língua portuguesa, as minorias, a etnicidade, o desemprego, a saúde. As políticas neoliberais têm produzido alterações na estrutura socioeconómica e a competitividade em vez de solidariedade tem contribuído para o aumento dos problemas sociais, com particular destaque para a exclusão social de certas minorias.
A Educação é um recurso extraordinário, uma potencialidade social e cultural que está em permanente estado de reinvenção, que deve assumir um papel determinante na procura de soluções estratégicas para o desenvolvimento global da sociedade. Neste cenário imenso que é a Educação, A Educação e Intervenção Comunitária não deverá ser considerada somente como mais uma área da Educação, mas ser entendida fundamentalmente como um espaço que permite explorar novas estratégias de promoção social e comunitária propiciadoras de mudança, de transformação da realidade. Essa mudança deve significar melhoria da qualidade de vida dos sectores populares da nossa sociedade. Essa acção sócio-pedagógica de despertar nas pessoas a consciência crítica e a vontade de participarem de uma forma activa nos processos de mudança da realidade social no sentido do desenvolvimento endógeno e global, constitui uma das principais finalidades da Educação e Intervenção Comunitária.
No âmbito das Práticas, a área da intervenção social e comunitária, onde os alunos vivenciam esta primeira experiência pré-profissional, é muito abrangente e complexa. Face aos diferentes contextos sociais, onde intervêm, os alunos futuros educadores comunitários centram-se fundamentalmente em duas dimensões. Uma dimensão refere-se à promoção da realização pessoal e à melhoria do bem-estar das pessoas, através da realização de acções de formação/informação. Uma outra dimensão refere-se à intervenção social e comunitária realizada a partir do trabalho junto de minorias e grupos sociais desfavorecidos, no sentido de ajudar a incrementar relações mais igualitárias na sociedade. É uma intervenção perspectivada para a consciencialização de pessoas e grupos sociais por forma a aprenderem a assumir um papel mais dinâmico e participativo nos processos que visam a mudança social. É agir em solidariedade com aquelas pessoas que têm menos poder, ajudando-as a analisar a sua situação e a alcançar mais poder.
Daí o trabalho destas alunas na APATRIS. Porquê na APATRIS? Porque a educação para a inclusão e, consequentemente, a educação para os direitos humanos são uma das áreas que a educação comunitária mais privilegia, em termos de acção. Não há mudança social, sem uma verdadeira educação para os direitos humanos. A promoção da educação para os direitos humanos é uma questão ao mesmo tempo complexa mas desafiante, já que, significa enfrentar muitos desafios, exige reflectir sobre a relação educação - sociedade, a organização do nosso sistema educativo, a importância das práticas sociais e culturais .
Daí a necessidade de se criarem espaços como este e outros onde se reflicta sobre problemáticas actuais, se sensibilize a opinião pública e se denunciem situações que ponham em causa o direito à diferença.
As pessoas, sobretudo, os adultos, parecem ter medo daquilo que desconhecem. Como exemplo, podemos falar de pessoas diferentes, com diferentes tipos de problema, como a Trissomia XXI. Muitos adultos receiam falar, ou pior ainda, conhecer este ou outro tipo de problema. Parecem ter medo que contagie. Não estamos a falar da gripe das aves, estamos a falar de um tipo de deficiência que existe nos nossos filhos, nos nossos sobrinhos, ou nos filhos e filhas dos nossos vizinhos e amigos. Repare-se que a incidência deste acidente genético é de 1 a 3% da população mundial, sendo que 1 em cada 700 a 800 nascimentos, é portador da Síndrome de Down.
Não é obrigatório que saibamos muita coisa sobre certos problemas de saúde que levam a alguma incapacidade para realizar certas tarefas, mas é no mínimo obrigatório que as pessoas desenvolvam alguma sensibilidade, que respeitem a diferença, que promovam uma cidadania mais activa e procurem conhecer um pouco mais sobre alguns dos problemas que afectam, um pouco por todo o lado, crianças, jovens e adultos.
Há que dar um valente pontapé no preconceito. Por falar em preconceito, no passado dia 21 foi comemorado o dia do combate à discriminação. Como estamos a falar de Trissomia XXI, mais conhecido pelo síndrome de Down, convém recordar que esta denominação vem do remoto ano de 1866 quando esta síndrome foi caracterizada pela primeira vez pelo médico John Longdon Down. A denominação dada por ele foi "mongolian idiots", porque ele acreditava que a Síndrome de Down representava uma "regressão, por degeneração, a uma raça mais primitiva" (os mongóis). Esta denominação, prejudicou a imagem do portador da Síndrome de Down, que levou a que se criassem muitos preconceitos. Esta, aliás, é uma característica do período histórico em que a ciência se encontrava quando o Dr. Down fez esta descrição. Naquela época, os cientistas acreditavam que existiam raças "superiores" e "inferiores", do ponto de vista evolutivo. Para eles, a "raça superior" seria a caucasiana, seguida pela mongólica e, por último, a negra. Em 1959, quando se descobriu os aspectos genéticos da síndrome, deu-se-lhe o nome do Dr. Down, em sua homenagem. Diferente do que muitas pessoas pensam, a Síndrome de Down não é uma doença, mas sim um acidente genético que ocorre por ocasião da formação do bebé, no início da gravidez.
Hoje, passados duzentos e quarenta anos, ainda se mantêm preconceitos em relação a pessoas, crianças, jovens, adultos que sofreram este acidente genético. Um preconceito que nasceu connosco por não termos sido educados para entender a diversidade como algo que é natural nas nossas vidas. Então esse é o papel do educador comunitário, educar para a diversidade. No caso concreto das alunas que estão a fazer Prática na APATRIs a sua função, em certa medida, é ajudar a que estas pessoas, crianças, jovens, adultos, portadores de Trissomia XXI sejam levados a sério pela sociedade que somos todos nós, para que possam assumir com toda a dignidade tudo aquilo a que têm direito como pessoas que são. O direito à vida, a uma vida digna, deve ser defendido e promovido para todas as pessoas.
Daí uma intervenção também centrada no direito à indignação. Como educadores, como pais, como pessoas, não nos podemos resignar a aceitar situações de exclusão, de indiferença, de insensibilidade face a quaisquer formas de descriminação e/ou humilhação. Fazer educação comunitária é também criar espaços de comunicação como este onde possamos reflectir criticamente, denunciar e expressar sentimentos de revolta e de indignação contra situações desse tipo. Esta é uma forma de agir em solidariedade que, complementada com outras acções, contribuirão para uma educação em Direitos Humanos que promova essa capacidade de agir e reagir face ao que ocorre com todos os anónimos portadores de Trissomia XXI.
Este é, seguramente, um campo de acção da Educação e Intervenção Comunitária na edificação de uma educação para os direitos humanos que ajude na mudança das mentalidades e contribua para gerar novas práticas sociais.
E, para concluir, resta-me referir que não privo de perto com muitas crianças ou jovens com Trissomia XXI….Mas, quase todos os sábados encontro a Margarida no mercado de Olhão…para ela, para todas as Margaridas e todas as crianças, jovens e adultos que como ela são portadoras de Trissomia XXI, aqui recordo um poema de António Gedeão, intitulado Poema do Amor:
Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor, de amor, de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor, amor, amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que, tantos se,
tantos lhe, tantos tu,
tantos ela, tantos eu,
conclua que a palavra
que o poeta mais vezes escreveu
foi amor, amor, amor.
Este é o poema do amor.

Referências bibliográficas:

Diéguez, A.J. (1998). La promoción social comunitaria. Concepciones y evolucion. Promoción Social Comunitaria. Buenos Aires. Espacio Editorial.
Freire, P. (1979). Educação e Mudança. Rio de Janeiro. Paz e Terra.
Payne, M. (2002). Teoria do Trabalho Social Moderno. Coimbra. Quarteto Editora.
http://boticelli.no.sapo.pt/antonio_gedeao.htm


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