2006-03-24

Colóquio na Biblioteca - 24 de Março

Texto da comunicação proferida na sessão de abertura do Colóquio organizado pelo grupo de Práticas na Associação APATRIS, no dia 24 de Março na Biblioteca Municipal de Faro

“Um pontapé no preconceito”
Vivemos em Portugal numa sociedade que apregoa valores democráticos mas que pouco faz para combater a injustiça social, a discriminação, a exclusão. Na nova estrutura social a exclusão é um fenómeno vinculado a várias dimensões, como a pobreza, o sexo, o domínio da língua portuguesa, as minorias, a etnicidade, o desemprego, a saúde. As políticas neoliberais têm produzido alterações na estrutura socioeconómica e a competitividade em vez de solidariedade tem contribuído para o aumento dos problemas sociais, com particular destaque para a exclusão social de certas minorias.
A Educação é um recurso extraordinário, uma potencialidade social e cultural que está em permanente estado de reinvenção, que deve assumir um papel determinante na procura de soluções estratégicas para o desenvolvimento global da sociedade. Neste cenário imenso que é a Educação, A Educação e Intervenção Comunitária não deverá ser considerada somente como mais uma área da Educação, mas ser entendida fundamentalmente como um espaço que permite explorar novas estratégias de promoção social e comunitária propiciadoras de mudança, de transformação da realidade. Essa mudança deve significar melhoria da qualidade de vida dos sectores populares da nossa sociedade. Essa acção sócio-pedagógica de despertar nas pessoas a consciência crítica e a vontade de participarem de uma forma activa nos processos de mudança da realidade social no sentido do desenvolvimento endógeno e global, constitui uma das principais finalidades da Educação e Intervenção Comunitária.
No âmbito das Práticas, a área da intervenção social e comunitária, onde os alunos vivenciam esta primeira experiência pré-profissional, é muito abrangente e complexa. Face aos diferentes contextos sociais, onde intervêm, os alunos futuros educadores comunitários centram-se fundamentalmente em duas dimensões. Uma dimensão refere-se à promoção da realização pessoal e à melhoria do bem-estar das pessoas, através da realização de acções de formação/informação. Uma outra dimensão refere-se à intervenção social e comunitária realizada a partir do trabalho junto de minorias e grupos sociais desfavorecidos, no sentido de ajudar a incrementar relações mais igualitárias na sociedade. É uma intervenção perspectivada para a consciencialização de pessoas e grupos sociais por forma a aprenderem a assumir um papel mais dinâmico e participativo nos processos que visam a mudança social. É agir em solidariedade com aquelas pessoas que têm menos poder, ajudando-as a analisar a sua situação e a alcançar mais poder.
Daí o trabalho destas alunas na APATRIS. Porquê na APATRIS? Porque a educação para a inclusão e, consequentemente, a educação para os direitos humanos são uma das áreas que a educação comunitária mais privilegia, em termos de acção. Não há mudança social, sem uma verdadeira educação para os direitos humanos. A promoção da educação para os direitos humanos é uma questão ao mesmo tempo complexa mas desafiante, já que, significa enfrentar muitos desafios, exige reflectir sobre a relação educação - sociedade, a organização do nosso sistema educativo, a importância das práticas sociais e culturais .
Daí a necessidade de se criarem espaços como este e outros onde se reflicta sobre problemáticas actuais, se sensibilize a opinião pública e se denunciem situações que ponham em causa o direito à diferença.
As pessoas, sobretudo, os adultos, parecem ter medo daquilo que desconhecem. Como exemplo, podemos falar de pessoas diferentes, com diferentes tipos de problema, como a Trissomia XXI. Muitos adultos receiam falar, ou pior ainda, conhecer este ou outro tipo de problema. Parecem ter medo que contagie. Não estamos a falar da gripe das aves, estamos a falar de um tipo de deficiência que existe nos nossos filhos, nos nossos sobrinhos, ou nos filhos e filhas dos nossos vizinhos e amigos. Repare-se que a incidência deste acidente genético é de 1 a 3% da população mundial, sendo que 1 em cada 700 a 800 nascimentos, é portador da Síndrome de Down.
Não é obrigatório que saibamos muita coisa sobre certos problemas de saúde que levam a alguma incapacidade para realizar certas tarefas, mas é no mínimo obrigatório que as pessoas desenvolvam alguma sensibilidade, que respeitem a diferença, que promovam uma cidadania mais activa e procurem conhecer um pouco mais sobre alguns dos problemas que afectam, um pouco por todo o lado, crianças, jovens e adultos.
Há que dar um valente pontapé no preconceito. Por falar em preconceito, no passado dia 21 foi comemorado o dia do combate à discriminação. Como estamos a falar de Trissomia XXI, mais conhecido pelo síndrome de Down, convém recordar que esta denominação vem do remoto ano de 1866 quando esta síndrome foi caracterizada pela primeira vez pelo médico John Longdon Down. A denominação dada por ele foi "mongolian idiots", porque ele acreditava que a Síndrome de Down representava uma "regressão, por degeneração, a uma raça mais primitiva" (os mongóis). Esta denominação, prejudicou a imagem do portador da Síndrome de Down, que levou a que se criassem muitos preconceitos. Esta, aliás, é uma característica do período histórico em que a ciência se encontrava quando o Dr. Down fez esta descrição. Naquela época, os cientistas acreditavam que existiam raças "superiores" e "inferiores", do ponto de vista evolutivo. Para eles, a "raça superior" seria a caucasiana, seguida pela mongólica e, por último, a negra. Em 1959, quando se descobriu os aspectos genéticos da síndrome, deu-se-lhe o nome do Dr. Down, em sua homenagem. Diferente do que muitas pessoas pensam, a Síndrome de Down não é uma doença, mas sim um acidente genético que ocorre por ocasião da formação do bebé, no início da gravidez.
Hoje, passados duzentos e quarenta anos, ainda se mantêm preconceitos em relação a pessoas, crianças, jovens, adultos que sofreram este acidente genético. Um preconceito que nasceu connosco por não termos sido educados para entender a diversidade como algo que é natural nas nossas vidas. Então esse é o papel do educador comunitário, educar para a diversidade. No caso concreto das alunas que estão a fazer Prática na APATRIs a sua função, em certa medida, é ajudar a que estas pessoas, crianças, jovens, adultos, portadores de Trissomia XXI sejam levados a sério pela sociedade que somos todos nós, para que possam assumir com toda a dignidade tudo aquilo a que têm direito como pessoas que são. O direito à vida, a uma vida digna, deve ser defendido e promovido para todas as pessoas.
Daí uma intervenção também centrada no direito à indignação. Como educadores, como pais, como pessoas, não nos podemos resignar a aceitar situações de exclusão, de indiferença, de insensibilidade face a quaisquer formas de descriminação e/ou humilhação. Fazer educação comunitária é também criar espaços de comunicação como este onde possamos reflectir criticamente, denunciar e expressar sentimentos de revolta e de indignação contra situações desse tipo. Esta é uma forma de agir em solidariedade que, complementada com outras acções, contribuirão para uma educação em Direitos Humanos que promova essa capacidade de agir e reagir face ao que ocorre com todos os anónimos portadores de Trissomia XXI.
Este é, seguramente, um campo de acção da Educação e Intervenção Comunitária na edificação de uma educação para os direitos humanos que ajude na mudança das mentalidades e contribua para gerar novas práticas sociais.
E, para concluir, resta-me referir que não privo de perto com muitas crianças ou jovens com Trissomia XXI….Mas, quase todos os sábados encontro a Margarida no mercado de Olhão…para ela, para todas as Margaridas e todas as crianças, jovens e adultos que como ela são portadoras de Trissomia XXI, aqui recordo um poema de António Gedeão, intitulado Poema do Amor:
Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor, de amor, de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor, amor, amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que, tantos se,
tantos lhe, tantos tu,
tantos ela, tantos eu,
conclua que a palavra
que o poeta mais vezes escreveu
foi amor, amor, amor.
Este é o poema do amor.

Referências bibliográficas:

Diéguez, A.J. (1998). La promoción social comunitaria. Concepciones y evolucion. Promoción Social Comunitaria. Buenos Aires. Espacio Editorial.
Freire, P. (1979). Educação e Mudança. Rio de Janeiro. Paz e Terra.
Payne, M. (2002). Teoria do Trabalho Social Moderno. Coimbra. Quarteto Editora.
http://boticelli.no.sapo.pt/antonio_gedeao.htm


2006-03-20

Texto para boletim do RVCC de Lagoa

Práticas de Educação comunitário no contexto do RVCC de Lagoa

As Práticas do 3º Ano do Curso de Educação e Intervenção Comunitária constituem um conjunto de actividades, de natureza prática, a realizar em Comunidades, Instituições/Projectos que visam proporcionar o contacto com experiências e contextos diversificados, no sentido de alunos e alunas ensaiem uma experiência pré-profissional.
Com a realização das Práticas pretende-se que alunos e alunas sejam capazes de enquadrar o seu trabalho de “intervenção social e comunitário” nos marcos teóricos que orientam a sua formação inicial no sentido de os/as comprometer com paradigmas de intervenção mais reflexivos e mais colectivistas centrados em torno da mudança e do desenvolvimento. É agir em solidariedade com aquelas pessoas que têm menos poder, ajudando-as a analisar a sua situação e a alcançar mais poder.
A intervenção social e comunitária é uma área muito abrangente e complexa que deve ser entendida no contexto social e cultural onde as alunas futuras educadoras comunitárias actuam, utilizando teorias relativas à educação social comunitária, através da realização de acções no âmbito da educação de jovens e adultos, animação sócio-cultural, animação sócio-educativa, formação profissional, alfabetização tecnológica.
Neste processo de formação alunos e alunas são parte fundamental na medida em que assumem um papel determinante na escolha dos espaços de Prática, de acordo com as suas motivações, preferências, interesses. Foi o que aconteceu com a Vanessa, Ana Bento, Ana Sabóia, Liliana, Cátia, relativamente ao RVCC de Lagoa. Para estas alunas as práticas num Centro, em que são reconhecidas as competências escolares e/ou profissionais que as pessoas adultas adquiriram ao longo da vida constitui um excelente desafio e um processo acelerado de construção de conhecimentos.
O início terá sido difícil face às indefinições próprias de um processo como a formação de um Centro RVCC. Relativamente ao Centro RVCC de Lagoa o Prof. Fragoso insistiu, a ESE concordou e a Câmara Municipal de Lagoa aceitou a proposta de se criar um espaço de comunicação, de troca de experiências e de partilha de conhecimento com vista à elevação das qualificações dos adultos de Lagoa e arredores.
Com as alunas Vanessa, Ana Bento, Ana Sabóia, Liliana, Cátia, também foi um exercício de persistência, de acreditar que seria possível a realização da Prática no RVCC de Lagoa. E aí está o resultado, depois de feita a Caracterização do Centro e de participarem na realização de algumas tarefas, passaram a uma segunda fase que consiste na aplicação de um Projecto de acção. Nesta segunda fase do Projecto, irão confrontar-se com dificuldades, mas com dedicação, com sentido ético, com o saber construído ao longo do processo de formação inicial, com a colaboração dos outros educadores, com o apoio da tutora, irão construir as suas aprendizagens pela via da resolução de problemas.
Estas jovens não terão solução para todos os problemas com que se irão confrontar no âmbito da sua condição de estagiárias, mas seguramente que procurarão dar o seu melhor contributo para Afirmar o Centro RVCC de Lagoa, como um espaço atento à pessoa de cada adulto que se dirige ao Centro, para criar, com autonomia, respostas credíveis e eficientes à heterogeneidade social que caracteriza a população adulta que procura o Apoio de um corpo de Educadores dedicados à causa da Educação e Formação de Adultos.
Para estas jovens, realizar a Prática no Centro RVCC de Lagoa não será uma tarefa fácil, mas estou certo de que será encarada com o optimismo e a determinação de quem vai realizar as Práticas para adquirir conhecimentos e desenvolver competências. A construção de competências exige tempo, esse o principal dilema destas alunas.

Faro, 15 de Março de 2006
O Coordenador da Prática
Joaquim Arco






2006-03-19

Texto de apoio à aula de Seminário de Investigação

ABORDAGENS (AUTO)BIOGRÁFICAS

As abordagens (auto)biográficas tornaram-se, há uns vinte anos, um material de pesquisa muito em voga nas ciências humanas, pois não há simpósio, colóquio ou encontro científico no qual estejam ausentes.

No campo da Psicologia e da Educação, cabe lembrar as perspectivas de Carl Rogers, de Paulo Freire e de Bernard Honoré, como os autores de referência que prepararam o terreno de interesse biográfico para abordar a formação do ponto de vista do sujeito aprendiz. No campo da Sociologia, Crozier e Friedberg contribuíram fortemente com “O actor e o sistema” para dar uma tradução concreta da teoria sistémica. No campo das Ciências da Educação refira-se António Nóvoa e Andy Hargreaves.

As obras de Edgar Morin (1977), sob o título geral La méthode, que desenvolvem um olhar científico sobre a complexidade das dinâmicas bio-psico-sócio-culturais, foram publicados na época em que Josso, Pierre Dominicé, Matthias Finger vislumbraram um novo horizonte teórico no campo da educação de adultos para uma abordagem da formação centrada sobre o sujeito aprendiz, utilizando a mediação de uma metodologia de pesquisa-formação articulada às histórias de vida.

Na Europa, na América do Norte e na América do Sul têm sido desenvolvidos projectos de conhecimento a partir do desenvolvimento das abordagens (auto)biográficas bem como têm sido encorajados, sustentados, acompanhados ou supervisionados projectos de formação, de acção ou de intervenção utilizando esta metodologia.

Para Moita (1992) a abordagem (auto)biográfica é uma expressão genérica ligada a outra que é mais comum – histórias de vida.

Segundo Nóvoa (1992) há um conjunto de concepções e de estratégias que se acomodam sob a designação de “histórias de vida”. A situação complica-se quando se menciona a heterogeneidade de modos de trabalho e técnicas de investigação. Nóvoa assinala sete aspectos:
- utilização de materiais já existentes (memórias, diários);
- reflexão baseada essencialmente em materiais escritos ou orais;
- tipo de acordo celebrado entre “investigador” e “narrador” relativamente à análise do material (auto)biográfico;
- número de casos em que se baseia o estudo ( a literatura refere a existência de estudos baseados numa única história de vida, em duas, três,..até cerca de 800);
- o contexto e a forma de produção do material (auto)biográfico (individual, grupo, etc…)
- técnicas utilizadas para mobilizar as histórias de vida (narrativas, diários, fotografias;
-técnicas de análise dos documentos (auto)biográficos.

Segundo Moita (1992) eis alguns dos pressupostos da abordagem (auto)biográfica:
- O saber que se procura é do tipo compreensivo, hermenêutico (interpreta o sentido das palavras), profundamente enraizado nos discursos dos narradores. O papel do investigador é fazer emergir o(s) sentido(s) que cada pessoa pode encontrar nas relações entre as várias dimensões da sua vida.;
- O tipo de enfoque deste estudo exclui a formulação de hipóteses a serem sujeitas a verificação, uma vez que não se procura a relação entre variáveis. Torna-se, porém, fundamental a definição dos eixos de pesquisa que explicitem e delimitem o campo da investigação;
- O quadro de análise interpretativo da história de vida é elaborado de um modo coerente com o objectivo da pesquisa. Como refere Ferrarotti (1984) o problema é ordenar, compreender sem desnaturar, sem violentar, sem impor um esquema preestabelecido;
- Cada história de vida é única. Tentar elaborar conclusões generalizáveis seria absurdo. Pode-se é ler o geral a partir de uma singularidade, o que exige grande esforço.
- Neste processo de pesquisa impõe-se a criação de condições de uma efectiva implicação do(s) participante(s);
- O tipo de relação entre investigador e narrador é de boa colaboração;
- A participação neste processo tem um carácter formativo

Um relato biográfico consiste na recolha da narração de uma experiência vivida por uma pessoa e expressa pelas suas próprias palavras. É um tipo de investigação qualitativa de carácter descritivo em que a maior importância reside no relato do/a entrevistado/a. O relato biográfico é composto de dois elementos: a narração do/a entrevistado/a e a apreciação crítica do investigador/a.

O relato biográfico tem como principais objectivos conhecer a realidade de uma outra pessoa através das suas próprias palavras. O investigador ao centrar-se num aspecto concreto da vida do entrevistado, vai procurar conhecer e interpretar a sua visão pessoal. Vai tentar compreender “aquilo” que assume maior importância para o/a entrevistado/a ao nível da forma como vê o mundo, quais os principais significados e quais as suas perspectivas face a esse mundo em que vive.

Com o relato biográfico pretende-se conhecer a realidade de uma pessoa através das suas próprias palavras, procurando aprender o que de mais importante é para essa pessoa, significados que atribui às “coisas”, perspectivas sobre a “vida” e a forma como “ lê” o mundo.

Com o relato biográfico o investigador vai procurar compreender a visão pessoal dessa pessoa sobre aspectos muito concretos da sua vida. Os relatos biográficos todos têm como ideia essencial que a pessoa é um ser de histórias, que as pessoas se compreendem contando histórias sobre eles próprios e sobre os outros e escutando as histórias que as outras pessoas têm para contar.
O relato biográfico pode ser visto como um "lugar da palavra", situando-se não na relação interindividual, mas na aproximação intersubjectiva, na aproximação ao Outro, ao mesmo tempo um meio viabilizador de uma expressão "em espelho". Uma vez que a vida quotidiana é vivida diferentemente segundo as idades e as personalidades, o relato de vida é um verdadeiro espelho do sujeito enquanto actor, ser social, ser cultural e ser comunicativo. Ouvir a voz das pessoas ensina-nos que o relato de vida é de grande interesse quando falam do seu trabalho sendo o ambiente sócio-económico e sócio-cultural dimensões chave do que as pessoas são, do sentido do “eu”. O estilo de vida, as suas identidades e culturas ocultas, a profissão, os problemas, podem ajudar ao investigador a ver as pessoas em relação com a história do seu tempo, permitindo compreender a história da vida da pessoa no contexto da história, da sociedade.

Através do relato biográfico a pessoa redescobre o lado agradável de falar de si e explorar, sem apreensões, mais um passado reconstituído fielmente do que um futuro incerto. Igualmente importante no relato biográfico é também o seu carácter de não neutralidade para quem fala da sua vida. As recordações não são neutras porque recordar a prática do dia a dia já vivida não é somente recordar factos, de uma forma consciente, mas uma questão de reviver certos acontecimentos, ser capaz de os reordenar, dando forma a sentimentos, estabelecendo relações entre o que foi vivido.

O estudo dos relatos biográficos consiste em tentar compreender como as pessoas experienciam o mundo, pelo que à luz desta ideia a educação também se faz na construção e reconstrução de histórias pessoais. A escolha deste método não reside nem no facto de constituir uma simples técnica de investigação, nem em ser uma técnica de animação, mas sim na sua adequação enquanto abordagem metodológica ao objecto que pretendemos estudar.
Há vários géneros de relatos de vida:
- "O relato único", em que se tem em conta a singularidade do sujeito, abordada através de entrevistas ou etapas múltiplas, podendo tal relato ser a obra comum de um narrador e de um entrevistador;
- "O relato de vida de grupo - Relatos de vida cruzados" , praticado por certos sociólogos, em que se dá preferência ao grupo relativamente ao indivíduo, virão explicitar que por "Relatos de vida cruzados" se entenderá o "estudo de um grupo dado” (frequentemente uma comunidade rural, mas igualmente um bairro de cidade, um atelier de fábrica, etc.) que parte da recolha de testemunhos junto dos diferentes membros de um grupo, não existindo então interlocutor privilegiado, não havendo um 'ego' sobre o qual a pesquisa seja focalizada"];
-"Os relatos de vida acumulados", em que não há, à partida, uma temática escolhida que focalize os relatos sobre uma certa categoria de momentos e de acontecimentos vividos e de reflexões do sujeito, sendo fornecido ao narrador, a maior parte das vezes, um guia-plano para o relato autobiográfico.

Para além do relato biográfico, o investigador também pode recorrer a documentos pessoais. Efectivamente, sob o nome de documentos pessoais incluem-se várias criações pessoais escritas, orais ou gráficas, como: autobiografias, cartas, diários, respostas a questionários e entrevistas, evocações de sonhos, confissões, composições e arte, entre outras. Assim, qualquer produto autorrevelador, que produza informação intencional ou não, que contemple a estrutura, a dinâmica e funcionamento da vida mental da pessoa, pode definir-se como documento pessoal.

Através dos relatos (auto)biográficos a pessoa redescobre o lado agradável de falar de si e explorar, sem apreensões, mais um passado reconstituído fielmente do que um futuro incerto. Trata-se de afirmar, através dos relatos (auto)biográficos, uma necessidade profunda de conhecimento e expressão de si que o discurso social e as transformações do modo de vida tinham profundamente ocultado.

Os relatos biográficos, e concretamente a autobiografia, consistem numa reconstrução que envolve uma consciente e reflexiva elaboração de grande parte da vida do entrevistado incluindo experiências pessoais e profissionais, ao mesmo tempo que fornece uma interpretação dos episódios vitais e da relação que tem com eles.

Cada história de vida, cada percurso, cada processo de formação é único, pelo que tentar elaborar conclusões generalizadas será absurdo.

Há quem evidencie como grande particularidade dos relatos de vida o facto de constituírem uma metodologia retrospectiva, porque, há sempre no relato de vida um regresso atrás, sobre si e sobre os acontecimentos, porque dizer a sua vida é voltar ao passado, é situar-se num continuum de situações concretas, vividas de forma única, que se querem transmitir com uma certa tonalidade particular do ser em relação ao mundo.

Sete argumentos para as histórias de vida, (Goodson, 1992):
1. Ouvir a voz do entrevistado devia ensinar-nos que o autobiográfico, a 'vida', é de grande interesse quando falam do seu trabalho, da sua vida…
2. As experiências de vida e o ambiente sócio-cultural são ingredientes-chave da pessoa que somos, do nosso sentido do eu, devendo, por isso, ser estudados na sua plena complexidade;
3. O estilo de vida, a identidade e culturas ocultas, têm impacto sobre a prática profissional
4. A incidência no ciclo de vida ajudará a compreender os elementos únicos da vida profissional, assim como as decisões relativas ao local onde se exerce a profissão e à direcção que dá à carreira;
5. Estádios referentes à carreira e decisões relativas à carreira só podem ser analisados no próprio contexto.
6. A reflexão sobre a carreira aponta para o facto de que há incidentes críticos na vida e, em especial, no trabalho, que podem, decididamente, afectar a percepção sobre a prática profissional;
7. Os estudos referentes às vidas das pessoas podem ajudar-nos a ver o indivíduo em relação com a história do seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecção da história de vida com a história da sociedade, esclarecendo, assim, as escolhas, contingências e opções que se deparam ao indivíduo.

De acordo com a literatura podemos distinguir alguns tipos de história de vida:
- Relatos de vida relativos a um determinado período, cujo(s) acontecimento(s) ocorrido nesse período de tempo é o que interessa ao investigador.
- Relatos de vários momentos da vida do entrevistado a que corresponde uma determinada sequência que pertence à cronologia pessoal da pessoa.
-Entrevistas biográficas ou relatos biográficos relativos à vida social, familiar, profissional, pertencendo ao investigador estabelecer a relação entre os dados obtidos.
- Autoapresentação de uma mini-história de vida, ou seja, um relato sucinto da sua vida.
-História de vida social, construída através de várias entrevistas, em que o entrevistado relata, relaciona, avalia, compara os diferentes acontecimentos ocorridos ao longo da sua vida.
-Reconstrução biográfica realizada pelo investigador a partir de diversos documentos e vários relatos, utilizando técnicas diferentes.
-Autobiografía escrita pelo próprio narrador.

Para Tochon (1992), a história de vida, pode ser desenvolvida segundo uma orientação pessoal ou segundo uma orientação social crítica, mas, em qualquer dos casos, o fim é dar a palavra aos práticos, dar voz ao seu pensamento. E, uma vez que se apoia sobre a experiência pessoal, a investigação biográfica, sendo antes qualitativa que quantitativa, apoiar-se-á em instrumentos privilegiados da pesquisa narrativa (as notas sobre o terreno, o diário, as cartas, o diálogo, a entrevista), para que, a partir de fragmentos do passado, possa reconstruir a sua história.
As histórias de vida são constituídas por relatos que se produzem com o objectivo de reproduzir uma memória pessoal ou colectiva, que faça referência ao modo de vida de uma pessoa ou comunidade num determinado período da vida dessa pessoa ou da comunidade. Esta é o principal aspecto que diferencia a história de vida de outros materiais como histórias pessoais, contos populares, tradição oral. Para a realizar tem de haver uma relação entre um entrevistador e um narrador/entrevistado. A eficácia da entrevista dependerá desta relação. A entrevista conduz a uma narração de experiências relevantes, integradas no seu esquema cognitivo e de conduta, questionadas de forma diacrónica e sincrónica face a uma dimensão holística e global da vida humana. Não só se captam atitudes, sentimentos, pensamentos e acções como permite ao investigador organizar o esquema de ideias do entrevistado mediante uma associação intencional (narrativa) e pessoal (a partir dos próprios pontos de vista) dos primeiros e últimos acontecimentos de vida.
A técnica da história de vida permite fazer uma síntese retrospectiva da trajectória de vida do narrador, conhecer estratégias de sobrevivência, comparar trajectórias e estratégias de sobrevivência de vários entrevistados, definir hipóteses de trabalho sobre a relação entre o sistema de crenças e as formas e interacções sociais características de cada indivíduo entrevistado, criar pistas para futuras investigações, possibilitar aos indivíduos que reconstruam as suas próprias histórias de vida

A utilização deste método implica adoptar alguns procedimentos éticos:
a. Garantir a confidencialidade dos relatos.
b. Garantir o anonimato dos narradores e das pessoas que forem nomeadas nos relatos, se isso for solicitado pelo narrador
c. Respeitar a vontade do narrador se não quiser fazer referência a certos factos,

Os relatos de vida podem ser recolhidos sob a forma de: histórias de vida e depoimentos. Com as histórias de vida busca-se obter uma visão mais ampla da história e dos fenómenos mais relevantes. Os depoimentos decorrem das histórias de vida, circunscrevendo temáticas.

Segundo a literatura encontram-se diferentes objectivos para a história de vida. Ruiz e Ispizúa (1989) apontam os seguintes objectivos:
- Conhecer a totalidade de uma experiência biográfica no tempo e no espaço, desde a infância até ao momento presente, considerando o indivíduo e todos os que entram em relação significativa com ela, desde a família às relações de amizade, escolar, social, bem como a definição pessoal da situação, a mudança pessoal e de sociedade. As histórias de vida têm um carácter diacrónico;
- Identificar a ambiguidade e a mudança, tentando descobrir as mudanças e ambiguidades pelas quais a pessoa vai passando no decorrer da sua vida, bem como dúvidas, interrogações, contradições;
- Compreender a visão subjectiva com que cada um se vê a si mesmo e ao mundo, como interpreta a sua conduta e a dos demais para adaptar-se a esse mundo exterior;
- Descobrir as chaves de interpretação através da experiência pessoal desse(s) indivíduo(s) em concreto.

Na história de vida, a análise dos relatos assume um significado mais amplo, quando inscrito num marco teórico ou num contexto que lhe atribua sentido, pois, sempre que se dispensam valores, factos políticos, contextos históricos, a tentativa de entender a situação em estudo fica mais enfraquecida. A história pessoal de cada indivíduo e a sua relação com o contexto social possibilita analisar a relação entre as biografias individuais, os acontecimentos históricos e as limitações que as relações de poder, como a classe, raça, género impõem sobre as suas opções pessoais (Middleton,2004).
O referencial teórico é o espaço em que se inscreve, necessariamente, o problema da pesquisa, bem como, onde se observam as maiores preocupações do investigador.

Relativamente ao processo de construção das histórias de vida, deve sempre ter-se em conta que deve partir de uma interrogação, de uma questão de partida. A história de vida como processo investigativo deve incluir três momentos:
- Momento exploratório. Ao realizarmos a entrevista com a pessoa devemos conhecê-la um pouco, um pouco da sua vida, do seu contexto social e profissional. No momento da entrevista já deve haver alguma relação entre entrevistador e entrevistado para evitar momentos de tensão. O narrador deve confiar no investigador. Na fase exploratória já há algumas conversas em que o narrador conta, não a sua vida, mas um dia da sua vida, as suas rotinas diárias, etc… é o momento de estabelecer confiança e simpatia. É o momento de destruir barreiras. É a fase da recolha da informação.

-Momento descritivo. È a fase de organizar a informação e dar-lhe sentido. Dá uma primeira imagem da história de vida. É o primeiro resultado obtido que permite iniciar a interpretação do social. Na descrição deve estar presente a etnografia dos espaços relativos ao sujeito estudado, nomeadamente casa, trabalho, recreação, cenários de vida a que atribui importância. A fase descritiva permite reconstituir a vida da pessoa, as suas relações pessoais, profissionais, institucionais (diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és…), conflitos, percepções, significados

-Momento analítico. As histórias de vida têm um movimento em que se pretende passar da análise da história individual à análise da vida social. Por vezes, as histórias de vida, na sua fase exploratória, são relatos desconexos e espontâneos que passam a descrições coerentes. Com base num reflexão crítica vão se definindo espaços vitais e situações mais fortes carregadas de significado de acordo com o objecto de estudo. Nesta fase há que dar um salto da reflexão concreta a uma reflexão mais teórica. È o momento de ultrapassar o conhecimento do senso comum. Para isso o investigador terá de debruçar-se tranquilamente sobre cada um dos cenários mais importantes e sobre as situações mais críticas para reflectir sobre elas.

Segundo Polkinghorne (1995) o termo narrativa pode encerrar diferentes significados. No seu sentido mais amplo, narrativa é sinónimo de prosa, forma natural e mais vulgar do texto do corpo de dados da investigação qualitativa. Narrativa pode também querer referir o processo de fazer uma história, o esquema cognitivo da história, ou o resultado de tal processo, chamado de “story”, conto, ou história (history – acontecimentos agrupados e interligados num todo organizado temporalmente). A definição mais restrita de narrativa, associada à story é o tipo de discurso que liga diversos eventos, acontecimentos e acções da vida humana a processos dirigidos para objectivos relativos a uma temática. Goodson (2000) distingue life story de life history, considerando a primeira como uma reconstrução pessoal da experiência, a qual permite ao pesquisador obter dados, geralmente a partir de entrevistas não estruturadas. O pesquisador busca suscitar as percepções do entrevistado, estimulando-o a contar estórias. Neste caso o pesquisador tem uma postura relativamente passiva, em lugar de prontamente ir colocando interrogações. Já com relação à life history é diferente. Esta começa com uma story, porém procura ir adiante, construindo questões a partir de outras informações como, por exemplo, depoimentos de outras pessoas, evidências documentais ou informações históricas disponíveis.

Guimarães (2005) refere que dentro da abordagem narrativa existem 2 tipos de pesquisa que, possuindo diferenças significativas, ambas dão contributos importantes às Ciências Sociais e podem ser incluídos na investigação qualitativa porque partilham os seus princípios e trabalham com dados na forma de linguagem natural usando procedimentos analíticos:
- Paradigmática. Os dados recolhidos são relatos contados, são narrativas ou histórias (stories). O processo analítico, partindo de histórias, identifica as aspectos particulares dos dados, tipologias ou categorias e, através deste tipo de investigação produz-se conhecimento de conceitos. Assenta num raciocínio que procura regularidades e generalizações baseado na ideia de um sistema de descrição e explicação.
- Narrativa. Recolhe descrições de eventos, acontecimentos e acções. A análise dos dados coligidos produz histórias (stories), isto é, histórias de vida assente em representações expressivas de intenções, pensamento e acção humana e das relações entre acontecimentos e seus significados

Huberman e al. (1997) referem que a abordagem narrativa é coerente com a orientação pós-moderna pois as pessoas gostam de contar histórias, o que determina que as narrativas seja um meio privilegiado de conhecer o modo o como as pessoas se situam face à vida.

O relato de vida como narrativa realizada a partir da trajectória de vida da pessoa diferencia-se da história de vida porque esta se caracteriza pelo resultado da relação estabelecida com um contexto histórico e social. Esta conexão entre individual e colectivo realiza-se com a intervenção de terceiros, pois a história não fala por si mesma, precisa ser organizada e contextualizada.

Kelchtermans (1993) refere as seguintes características da abordagem (auto)biográfica:
- o facto de ser narrativa, pois, é sob a forma de narrativa que as pessoas relatam as suas experiências, valorizando o significado que tiveram para si;
- construtivista, pois, a pessoa constrói os significados de si e da sua vivência pessoal e profissional, tal como das suas experiências, em geral, numa história;
- contextual, porque, todos os acontecimentos são situados, física, institucional, social, cultural e intrapessoalmente;
- interaccionista na medida em que atribui à interacção com os outros e com o meio, um papel significativo nas construção dos significados.

Segundo Heikkinen (2000) o conhecimento é uma pluralidade de narrativas de natureza pessoal em permanente construção face às interacções com o social.
Para Bullough (1989) é preciso dar atenção às histórias pessoais porque influenciam o modo como as pessoas interpretam o mundo e determinam o que elas aprendem.

Segundo Goodson (2004) um das contribuições da abordagem biográfica é dar voz às pessoas, em vez de falar por elas através de estudos teóricos. Assim, descrevem as suas iniciativas, as suas frustrações, aspirações constituindo-se como forma de gerar uma contracultura baseada numas abordagem que tenha em conta essas pessoas (socialmente e/ou historicamente menos prestigiadas).

Metodologia

O elemento que distingue os estudos baseados na narrativa e nas histórias de vida, de outras formas de investigação qualitativa é a sua natureza dialógica e discursiva. Narrador e investigador constroem um entendimento mútuo.

Guimarães (2005) refere que a qualidade do material produzido depende do grau de implicação de cada participante e da relação entre eles.

Segundo Guimarães (2005) o Relato de Vida é completo se, à partida, não fica de fora nenhuma trajectória de vida e cobre a globalidade da existência do narrador.

Há 2 tipos de materiais que podem ser utilizados na abordagem biográfica:
-os materiais biográficos primários, isto é, as narrativas ou relatos autobiográficos recolhidos por um pesquisador, em geral através de entrevistas realizadas em situação face a face;
- os materiais biográficos secundários, isto é, os materiais biográficos de toda espécie, tais como: correspondências, diários, narrativas diversas, documentos oficiais, fotografias, etc., cuja produção e existência não tiveram por objectivo servir a fins de pesquisa.

Polkinghorne (1995) refere que na abordagem biográfica a informação pode vir de várias fontes incluindo entrevistas, jornais, documentos públicos e pessoais, observações, porém, realça que todos os dados provenientes destas fontes precisam de ser integrados e interpretados tendo em vista a estruturação da narrativa

A forma de trabalhar é baseada em entrevistas, pois busca-se valorizar o testemunho de pessoas que vivenciaram ou vivenciam as situações e problemas suscitados pelo estudo. Os depoimentos, além de serem utilizados como fontes de pesquisa, também recebem o estatuto de documentos, formando acervos que são organizados em arquivos, podendo ficar à disposição tanto do investigador como da pessoa estudada.

Tecnicamente entrevistar é estabelecer uma relação comunicativa que está sempre presente em todas as formas de recolha de dados orais. Nas técnicas de história oral (entrevistas, depoimentos e histórias de vida) a diferença entre histórias de vida e depoimentos está na forma específica de agir do investigador ao utilizar cada uma destas técnicas durante o diálogo com o narrador. O termo entrevista pode ser usado para designar o momento em que investigador e entrevistado estão frente a frente, e o termo depoimento para o resultado daquela relação comunicativa. Depoimento é uma técnica utilizada para obter declarações de um entrevistado sobre algum acontecimento no qual tenha tomado parte ou que tenha testemunhado. Ao colher um depoimento o colóquio é dirigido directamente pelo investigador. A entrevista pode-se esgotar num só encontro; os depoimentos podem ser muito curtos, residindo aqui uma das grandes diferenças com as histórias de vida. Toda a história de vida encerra um conjunto de depoimentos (Queiroz, 1991).
No momento e escolher a pessoa para o estudo há que ter em conta que essa pessoa deve estar disposta a colaborar e que tenha facilidade de expressão, que não se importe de partilhar momentos da sua vida ou de manifestar a sua perspectiva muito pessoal sobre as coisas. Quando escolhemos alguém com quem utilizar esta metodologia devemos pensar em pessoas que se destaquem pelas suas qualidades pessoais, consideradas pessoas especiais já que são possuidoras de habilidades e/ou conhecimentos fora do comum. Ou profissionais com um bom currículo que se destaquem pela sua trajectória de vida, conhecimentos, experiências, mudanças observadas na profissão nos último tempos ou então que tenham vivido tempos considerados históricos que influenciaram a sua vida pessoal e/ou profissional

A literatura recomenda que ao realizar a entrevista se tenha em conta que a entrevista deve assemelhar-se mais a uma conversa que a um interrogatório. Quem deve falar é o entrevistado. As questões mais importantes só aparecem quando o entrevistado já está mais familiarizado com a entrevista e acostumado à presença do gravador. É preferível utilizar gravador com microfone externo preso à roupa do entrevistado. Há dois aspectos fundamentais relativamente à entrevista: a forma como descreve os acontecimentos concretos que considera mais importantes seguindo uma certa cronologia, de uma forma descritiva e pormenorizada e a forma como interpreta estes e outros acontecimentos, como expressa as suas opiniões sobre as coisas, a sua mentalidade, a sua visão do mundo.

Há que ter em conta que a entrevista não deve durar mais de duas horas. Se for preciso continuar, continua-se no outro dia Ao terminar a entrevista o investigador deve registar no diário de campo as suas impressões sobre a forma como decorreu a entrevista e sobre as reacções e comportamentos do entrevistado.Finalizada a entrevista, ao realizar-se a sua transcrição não se devem omitir nem acrescentar palavras. Deve distinguir-se o que disse o entrevistado e o que disse o investigador, iniciando o parágrafo como nome de cada um. A transcrição deve ser rigorosa: o texto escrito deve reproduzir fielmente o que foi narrado, incluindo a sua própria fonética. As palavras ou frases de clarificação introduzidas no texto devem figurar entre parêntesis rectos. Por exemplo …fiquei muito irritado [crispou as mãos em sinal de fúria] e disse…. As palavras duvidosas, sons, palavras impossíveis de descrever devem assinalar-se entre parêntesis curvos ex: ele disse-me que foi à (maré) e que apanhou (…) Se for necessário pode-se substituir as palavras menos conhecidas por um vocabulário com o significado dessas palavras. As palavras explicadas devem aparecer entre parêntesis. Deve ainda utilizar-se os asteriscos “ “ quando o entrevistado refere palavras ou frases ditas por outros, ou as suas próprias palavras fora do contexto (ex: então ele disse-me “….” e eu pensei “…” porque acho que…)

Na análise de conteúdo, para definir as categorias deve ler-se várias vezes a entrevista para se familiarizar com os dados. A partir da leitura deve-se ir registando os temas que respondam à questão do que se trata a entrevista?. Para definir os temas pode partir-se das palavras chave da narração.
A leitura de uma entrevista, de uma história de vida, ou de um conjunto de depoimentos não é tarefa simples. O ponto de partida é, necessariamente, a precisa delimitação de um problema de pesquisa. È a partir dos seus interesses como investigador que irá reordenar os acontecimentos narrados pelo entrevistado. Quando se trabalha com um conjunto de depoimentos, cada depoimento contribui para a investigação, isolando acontecimentos ou indivíduos, complementando informações, oferecendo os elementos necessários para a construção do contexto social ao qual a investigação se refere.

A trajectória de vida de cada entrevistado é a porta de entrada para a realização da leitura dos depoimentos que devem ser reorganizados cronologicamente e de forma coerente. Inicialmente o investigador irá deparar-se com uma aparente desordem nos depoimentos, a qual precisará de ser superada para que se organize o método de interpretação das informações relacionadas com o problema da investigação. Reorganizar um depoimento significa identificar recorrências e agrupá-las, ordenar a narrativa num eixo diacrónico. Essa diacronia deve ser construída tanto para os depoimentos considerados isoladamente como para construir diferentes cenários espaço-temporais que situam acontecimentos inscritos num conjunto de depoimentos (Vansina,1968).

Segundo Torales (s/d) na análise dos depoimentos deve identificar-se os seguintes elementos:
- Tema: o tema é, em geral, oferecido ao entrevistado. Tem estreita relação com o problema de pesquisa. Daí a importância do guião de entrevista que permita um bom desenvolvimento do tema.
- Episódio. É o elemento mais próximo da organização do texto do depoimento. Os episódios são parcialmente orientados pelo guião da entrevista e marcados por recortes espacio-temporais, configurando-se como unidades de desenvolvimento da narrativa e estando relacionados com as diversas fases da vida de cada indivíduo entrevistado. Cada episódio, além de um poder apresentar sub-temas, inclui um conjunto de marcos cronológicos e espaciais, bem como referências a pessoas envolvidas nos acontecimentos narrados
- Referência. Ao se trabalhar com um conjunto de depoimentos, identifica-se uma referência comum, uma data, por exemplo, que poderá auxiliar na construção do eixo diacrónico ao qual se prendem as narrativas. A citação de datas, locais, acontecimentos do domínio público e personalidades públicas permite uma leitura conjunta e a construção de um contexto onde estão inscritas as lembranças do entrevistado. Essas referências situam episódios e entrevistados num quadro mais amplo que encerra um determinado motivo que precisa ser identificado
- Motivo. É o sub-tema particular, é o elemento que deve ser entendido como aquele que distingue um episódio de outro, a partir da significação que ele encerra no conjunto do depoimento.
- Trama. É a maneira como o entrevistado organiza o seu depoimento, sendo percebida pelo encadeamento dos episódios. Cada entrevistado faz o seu depoimento evidenciando uns aspectos e omitindo outros. A trama identifica a disposição pessoal do entrevistado que está relacionado com a sua percepção do real. Uma percepção orientada por valores sócio-culturais e que individualiza um depoimento em relação a outro, ainda que sejam construídos com base num mesmo tema.

Torales, M.A. (s/d) propõe o seguinte esquema para leitura de depoimentos recolhidos junto de um conjunto de indivíduos. Também pode ser utilizado nas histórias de vida:
1- Uma primeira leitura para a elaboração da trajectória de vida do entrevistado.
2- Delimitar o tema desenvolvido na narrativa. Quando se trabalha com um conjunto de depoimentos o tema confere uma relativa unidade às narrativas, mas deve-se identificar as particularidades de cada depoimento em relação ao tema da investigação.
3- Depois de delimitado o tema, novas leituras servem para demarcar episódios presentes nos depoimentos. Estes elementos permitem a organização de cada depoimento e a comparação entre eles. Para facilitar a operacionalização, episódios, motivos e referências devem ser anotados em fichas de modo a facilitar o seu manuseamento, ordenando-os em eixos sincrónicos e diacrónicos, dentro de um mesmo depoimento e dele em relação a outros.
4- Por fim, reorganiza-se o depoimento e, com base nas informações precedentes, determina-se a trama construída pelo entrevistado. Com isso poderemos identificar a intenção do entrevistado em ter narrado aquelas lembranças.

O papel da memória nas narrativas

A matéria prima dos depoimentos com os quais o investigador trabalha na história oral são as lembranças. As lembranças não vivem no passado, precisam de um tempo presente para serem recolocadas face a um sentido relacional. As lembranças não se apresentam isoladas e envolvem factos e pessoas. Através da entrevista procura-se que o indivíduo recorde através de associações mais ou menos livres. O indivíduo pode não se lembrar da data precisa de um acontecimento, mas lembrar-se mais ou menos quando ocorreu. A medida que os acontecimentos se distanciam no tempo, há a tendência para os recordar sob a forma de acontecimentos, de entre os quais nos lembramos melhor de uns que de outros.

Para Halbwachs (1990) a história oral não trabalha com uma memória colectiva, pois, é preciso reconhecer que as memórias individuais são construídas a partir das experiências dos indivíduos no interior de grupos sociais. Para o autor a memória é um fenómeno social que se manifesta de forma colectiva, individual ou histórica. É colectiva porque está relacionada coma vida da pessoa e em que o passado faz parte da consciência de um grupo social. A memória individual é um ponto de vista sobre a memória colectiva. A memória histórica é uma forma de conhecimento do passado.

Recordar constitui um acto de conhecimento (cognitivo), que o indivíduo com um certo distanciamento produz obre situações vividas no passado. Na maior parte das vezes, recordar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com ideias de hoje, experiências do passado. O indivíduo ao recordar, oferece um descrição dos acontecimentos ocorridos que supõem já uma certa análise desses mesmos acontecimentos, dada a distância temporal em que ocorreram e a sua maneira de avaliar essas experiências vivenciadas

De acordo com Pollak (1992) e Bosi (1995), as memórias relembradas vêm carregadas tanto da marca da história pessoal de cada entrevistado como também trazem referências aos contextos sócio-culturais por ele vivenciados. Assim, a história, com as facetas, pessoal e social, de cada pessoa entrevistada, foi construída, de modo que os depoimentos orais (as narrativas) dependem das memórias das entrevistadas. As histórias de vida são expressão da identidade social do informante. Porém, ao mesmo tempo que possuem no seu interior aspectos que reflectem o plano colectivo, não perdem, de modo algum, o seu carácter singular.

Portelli (1997) enfatiza que trabalhar com memória significa trabalhar com algo que está em processo e com um processo que é singular. Ou seja, as histórias relatadas, mesmo que parecidas, possuem as suas particularidades, a sua própria identidade. Cada narrativa é única e deve ser tratada como tal.

Pollak (1989) denominou de memórias subterrâneas, as memórias que estão guardadas de modo muito profundo na mente, ou mesmo inconscientemente, e que podem vir a aflorar, sendo recuperadas aos poucos, quando motivadas por razões do tempo presente.

Segundo Montenegro (1997), quando se trabalha com processos de rememoração e é proposto à pessoa entrevistada vivenciar a experiência de retorno ao passado, ela o faz através das percepções e influências que as experiências mais recentes lhe proporcionaram, possibilitando para ela, então, a construção da compreensão dos próprios processos de constituição da sua história de vida ou até mesmo da identidade pessoal e profissional. Rememorar o passado não significa trazer de volta ao presente os acontecimentos vividos exactamente tal como ocorreram, mas reconstitui-los através da vivência actual.

Referências bibliográficas:
Angel, J.O. (1997). Las historias de vida: un balcón para leer lo social. In Revista RAZÓN Y PALABRA, Número 5, Año 1, diciembre-enero 1996-97. Facultad de Ciencias Sociales y Humanas Universidad de Antioquia.
António Nóvoa (1992). Os professores e as histórias da sua vida. In Vidas de professores. Porto. Porto Editora.
Couceiro, M.T. (2000). Autoformação e coformação no feminino. Universidade Nova de Lisboa
Fisher, B.D. (s/d). Foucault e histórias de vida. Retirado de http://www.educacaoonline.pro.br/.
Flick, U.(2005). Métodos Qualitativos na Investigação Científica.Lisboa. Edições Monitor.
Ferreira, M., Amado, J. (coords). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro. Editora da FGV.
Gonçalves J.A.(2000). A carreira das professoras do ensino primário. In Vidas de professores. Porto. Porto Editora.
Goodson, I.(2000) Dar voz ao professor. As histórias de vidas dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In Vidas de professores. Porto. Porto Editora.
Guimarães, M.F. (2005). O desenvolvimento de uma professora de Matemática: Uma história de Vida. Edições Colibri. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Josso, M_C.(1999). História de vida e projeto : a história de vida como projeto e as “histórias de vida” a serviço de projetos. In Educ. Pesqui. vol.25 no.2 São Paulo .
Moita, C. (2000). Percursos de Formação e Trans-formação. In Vidas de Professores. Porto. Porto Editora.
Pierre Dominicé (1988). O método autobiográfico e a formação. Ministério da Saúde.
Poirier, J., Clappier-Valladon, S & Raybaut, P. (1999).Histórias de Vida: Teoria e Prática. Oeiras, Celta Editora.
Torales, M.A. (s/d). Educação Ambiental: Os Estudos Biográficos como alternativa para compreensão da prática docente. Retirado de http://www.lua.it/form/esrea/paper.html

Outros Sites consultados:
http://editora.mtodista.br/textos_disponíveis
http://www.pr.gov.br/arquivo%20publicolua.it/form/esrea/paper.html

Aleixo disse

O pipi vê-se elegante,
Não se julga ignorante,
Dá um som esquisito à voz...
E depois olha p´ra gente
Com um certo ar inteligente
De quem é mais do que nós.

Mas p´ra nós, que os conhecemos,
E provas nenhumas temos
De que não são imbecis
Não são o que julgam ser
Nem o que querem parecer
-São simplesmente pipis...